Poucas
vezes pensamos no poder que as palavras realmente têm, especialmente quando
refletimos sobre o poder que poderiam ter tido. Somos forçados a pensar em
certos assuntos pela força das circunstâncias, e mesmo quando temos o hábito de
refletir, dificilmente o fazemos sobre o suicídio. Há assuntos sobre os que, em
geral, não pensamos. Não é raro, no entanto, pensar sobre a própria morte. Já
devemos ter sido levados a isso por várias razões. Quando adoecemos, quando
escapamos de um acidente que poderia ter sido fatal. Na infância e na
adolescência não é raro ter esse tipo de experiências, particularmente se, como
crianças normais, há amigos para com eles se aventurar por lugares perigosos,
aqueles que não podem deixar de ser visitados, sejam florestas, rios, montanhas
escarpadas, cavernas e tantas outras coisas. A morte de alguém próximo, também,
é motivo para pensarmos mais detidamente sobre a morte, em geral, e nossa
própria morte, em particular. A morte natural de familiares me impressionou
desde criança. Tenho a sorte de não ter tido parentes próximos, amigos íntimos,
mortos em acidentes ou pela própria mão. Mas, de um tempo a esta parte,
ocorreram alguns episódios em que pessoas que conhecia melhor decidiram se
matar.
Já pensei,
como disse, na minha própria morte. Mais como uma possibilidade futura. Imagino
como será minha velhice e espero que morra tendo controle dos meus atos, de
minhas funções vitais, que, sobretudo, não perca a consciência do mundo e das
pessoas. Mas, uma vez ou outra, já passei por momentos em que imaginei que
seria melhor estar morto. Penso que todos nós passamos por isso e é importante
que o reconheçamos. Há, sem dúvida, momentos de angústia e desespero. E os motivos
que nos levam a esse estado parecem fortes demais, insuperáveis e, mais do que
nada, insuportáveis. A dor física cada vez mais aguda, decorrente de uma doença
terminal e que não tem esperança de ser eliminada, pode nos levar a pensar na
permissibilidade da morte assistida ou da eutanásia. Isso pode esperar por nós
no final dos nossos dias, numa idade avançada. Mas há também a dor emocional, o
sofrimento que preferiríamos trocar por uma dor física. Esse sofrimento que
dilacera, que consome. Talvez seja este último o motivo que leva as pessoas a
se matar, mais do que qualquer outra coisa. Sem dúvida, eu me lembro ter
passado por esses momentos, mais de uma vez.
Por
experiência, também sei que por mais dilacerado emocionalmente que possa ter me
sentido, sempre superei esses momentos e consegui ser feliz. E se procuro me
lembrar com precisão das razões que poderiam ter me levado ao desespero nessas
várias ocasiões, não posso, honestamente, me lembrar. Esse pensamento tem me
assaltado com freqüência ultimamente. Porque imagino que muitas pessoas que
tiram suas vidas, se não o tivessem feito, depois de um tempo não seriam
completamente capazes de apontar as razões precisas que os teriam levado a se
matar. É curioso isso, e terrível ao mesmo tempo.
Que é o suicídio
senão um ato cruel. Um duplo ato cruel. Cruel contra si mesmo, cruel contra os
outros. É um castigo auto-infligido que ninguém merece — ou, suponho, quase
ninguém. Talvez algum assassino hediondo mereça a morte que se causa, num
estado extremo de arrependimento e dor. Não sei ao certo. Mas, desconsiderando
esse tipo de casos extremos, e pensando nas pessoas que usualmente costumam se
matar — pessoas que consideramos normais, corretas, bons amigos, bons filhos e
filhas, bons pais ou mães —, o suicídio é um ato duplamente cruel. Se não há
esperanças emocionais, ao menos existe a possibilidade lógica de que as coisas
mudem radicalmente, o que vale tanto para as pessoas felizes quanto para as que
se consideram infelizes — aqueles que cogitam o suicídio.
Se, no
entanto, pensamos naqueles que os sobrevivem, parentes ou amigos dos suicidas, o
caso tem de ser o mesmo: recebem um castigo que não merecem. Não penso que
alguma vez seja correto dizer que alguém merece o sofrimento causado pelo
suicídio do outro. Quem se mata, sem os motivos de extrema dor física, de
doença terminal ou degradante — o que mesmo sem justificação poderia encontrar
explicação —, produz, e talvez espere produzir, uma dor no outro que supera em
muito a que deve tê-lo levado à própria morte. Tenho certeza que o suicida se
mata porque sofre, e deve sofrer nos momentos de acabar com sua própria vida,
com o qual termina seu próprio sofrimento. Mas a dor do outro só está começando;
iniciar-se-á e não terá fim. É uma dor que acompanhará o filho, o irmão, o pai,
o companheiro ou companheira, o amigo verdadeiro, pelo resto de suas vidas. O
mais provável é que, na maioria dos casos, o suicida condena os outros a uma
pena perpétua por um crime que eles nunca cometeram e de cuja falta podem não
ter a menor idéia.
Muito urgente e atual essa reflexão, mas gostaria de tratar de alguns aspectos que não foram tratados. Já senti vontade de me suicidar, quando estava vivenciando um assédio tão grave, em que a pessoa dizia que ia "estudar o caso" para atingir as pessoas que estavam ao meu redor. Então eu sentia como se eu estivesse "contaminado" as pessoas, com minha simples presença. O desejo de morte esteve presente em mim, em certo período. Entretanto, a situação foi amenizada e, hoje, seguindo também sua reflexão, eu me sinto aliviada por não ter cometido suicídio. Contudo, eu penso que o que me fez mudar de ideia foi o amparo da família, dos amigos e o amparo legal. Acredito que sem isso, a alternativa do suicídio manter-se-ia de forma latente ou seria efetivada por mim. Apesar desse caso não ser (em relação à conclusão), diferente dos casos citados, eu vejo que esse exemplo traz um elemento novo: a questão do amparo ou da falta dele. Eu vejo que o grande problema do suicídio (nos casos em que não se está com uma doença terminal ou dores físicas insuportáveis) é o problema do sentimento do desamparo. O sentimento do desamparo tem uma relação entre as necessidades daquele que sente e a qualidade do apoio que é ofertado. Muitas vezes, aquele que tem o sentimento do desamparo não pode modificar as atitudes do outro, mas pode, pelo menos diminuir a expectativa que possui em relação às atitudes dos outros. Dessa maneira, o cultivo da simplicidade do coração, de nada esperar - que está diretamente relacionada com a capacidade em se alegrar com as pequenas coisas- é uma prática que pode substituir o sentimento de desamparo e, assim, evitar o suicídio. Do outro lado, o exercício da empatia e da audição dos sinais dos pedidos de socorros também são práticas que poderiam ser cultivadas pela sociedade como um todo com a finalidade de diminuir esses casos específicos de suicídio. Contudo, resta saber se nossa sociedade tem como valor evitar o suicídio. Se antes, no desenvolvimento da modernidade, a preservação da vida humana era valor ético inquestionável, hoje, na contemporaneidade, vemos esse valor sendo relativizado, pelos motivos mais medíocres.
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