sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

https://decomofazerfilosofia.blogspot.com.br/

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"La justicia es para el de poncho"

  É um conhecido ditado no meu país. A justiça se aplica ao pobre. E o pobre, tradicionalmente, é membro de alguma das muitas comunidades indígenas cuja vestimenta inclui o tradicional poncho. Lá como cá, o engravatado, membro da elite, dificilmente paga pelo que faz. Pode até ser processado, mas dificilmente condenado. E se condenado, cumpre a pena em liberdade ou uma punição “alternativa”. Não digamos os privilegiados que têm o amparo do foro especial, que gozam de imunidade parlamentar etc. A justiça é para o índio, o negro, o pobre. Tanto aqui, no Brasil, como na América Latina. Mas nos Estados Unidos não é diferente, como provam os episódios sobre os que escrevi nos últimos meses e que discutem a violência policial contra crianças, jovens, mulheres, todos eles negros inocentes, desarmados, mortos das mais variadas formas. Por “mais variadas formas” quero dizer, por exemplo, assassinados pelas costas, mortos sob custódia policial ou crivados a bala pelo crime de virar na esquina sem dar sinal, dirigir com uma lanterna quebrada ou brincar sozinho num parque.

  Como faço todos os dias de manhã, entrei nos jornais que costumo ler e encontrei uma matéria no The Huffington Post que traz a seguinte manchete: “27 coisas que uma pessoa negra deve aprender antes dos 12 anos de idade”. A matéria começa assim: “Estourou a notícia na segunda-feira à tarde de que mais um júri se absteve de indiciar o responsável pela morte desnecessária de uma pessoa negra.” É... “mais um júri se absteve de indiciar”, pois faz parte do sistema ter mecanismos para livrar os responsáveis pela morte de inocentes. Especialmente se os responsáveis são brancos; e os mortos, negros. Poucas linhas depois: “A mensagem é clara: a vida de um negro é mais descartável do que nunca”.

  O que uma criança negra deve aprender, entre outras coisas, é, em primeiro lugar, “ter respeito pela polícia, aconteça o que acontecer”. Por “aconteça o que acontecer” deve-se entender respeitar os policiais mesmo “quando te ameaçam injustamente, ou te prendem, ignoram procedimentos básicos e usam força excessiva”, ou seja, quando te agridem até a beira da morte ou te matam aos poucos com descargas elétricas. Em segundo lugar, deve aprender que, mesmo assim, “isso pode não adiantar”, e, em terceiro, pior ainda, pode que nem ajude o negro “a salvar sua vida”. Aconselha-se, na medida do possível, a sempre usar terno e gravata! No entanto, deve sempre lembrar que, por mais bem vestido que esteja, sendo negro, de nada irá adiantar para não ser tido como “suspeito”. Deve lembrar que é sua “negrura” o que sempre fará que apareça como uma ameaça. Não deve esquecer que, antes mesmo de chegar à puberdade, sendo negro, será considerado um homem, não um garoto. Nem de que essas regras não se aplicam aos garotos brancos. É melhor que não apareça em festas com piscina. (Pode ocorrer o que lhe aconteceu àquela garota negra que, mesmo desarmada e de biquíni, foi violentamente jogada contra o chão por um policial branco que a agrediu e a prendeu contra a calçada sentando-se em cima dela.) Deve, também, tentar andar com cuidado (isto é, imitando o jeito de andar e o movimento dos brancos). Caso contrário, “há uma chance de ser morto pela polícia antes mesmo de ser arrestado”. Não pode esquecer que “será culpado pela própria morte”. Deve saber que, se for morto sem motivo — como muitos têm sido pela polícia —, não deve esperar que a justiça seja feita. Que tampouco adiantará que sua morte seja registrada por câmeras e exibidas 24 horas por dia no país e no mundo inteiro. Que o mais provável é que seus algozes não sejam julgados, ou declarados culpados se julgados, e que fiquem livres e impunes. Deve ter consciência de que nenhum destes conselhos deveria ser considerado “Ok”. Ou seja, de que “nenhuma pessoa negra deveria receber estas advertências e aceitá-las como um fato normal da vida. Que nenhuma pessoa negra deveria crescer se sentindo insegura ou achando que os negros devem provar sua própria humanidade”. Mas que, apesar disso “nós [negros], as aceitamos”. Como muitos esperam que os negros na América Latina e no Brasil também as aceitem.

Racismo e preconceito

  Desde que cheguei ao Brasil me surpreendi com aquela imagem tão negativa que, em geral, o brasileiro tem de si mesmo, do seu próprio país e, claro, do desprezo, quando não ódio, por negros e nordestinos. Já escrevi, inclusive, sobre as expressões “brasileiro não presta” e “quando negro não c... na entrada, c... na saída”. Antes de pensar em vir ao Brasil jamais imaginei algo semelhante.

  Bem, gosto muito de esportes e tenho visto alguns jogos do Aberto dos Estados Unidos. Naturalmente, esperei muito pelo jogo entre a Venus e a Serena Williams. Antes do jogo, um comentarista brasileiro de uma emissora de televisão disse algo quase exatamente a isto: “Ó, como é bom poder chegar num lugar como estes e admirar a beleza de tudo sem se preocupar com esconder o relógio ou ficar de olho na carteira por medo de assaltos”! A referência ao Brasil foi tão impertinente que comentei com minha mulher: o desinformado não deve saber que Manhattan, Queens e o Bronx estão entre os lugares mais perigosos de Nova Iorque. Quem já esteve alguns dias nessa cidade sabe como ela é um misto de beleza e perigo, abundância e miséria, e como é medonho pegar o metrô, especialmente à noite.

  Não deixou de ser inusitado, no entanto, que dois dias depois do jogo das irmãs Williams tenha aparecido uma notícia originada em Nova Iorque relatando a agressão sofrida por um ex-jogador de tênis por parte, não de bandidos, mas de policiais que o jogaram contra o chão sem sequer perguntar antes quem era. James Blake, negro, 35 anos, que já esteve entre os cinco melhores jogadores de tênis do mundo, foi atacado por um grupo de cinco policiais à paisana pelo delito de se parecer com um ladrão, claro, negro. Segundo contou aos jornalistas, ele saía do hotel, tranquilamente, para ver os jogos do Aberto dos Estados Unidos. Ele viu homens se aproximando, sorriu para um deles e, sem mais, foi jogado contra o chão, imobilizado por quinze minutos e algemado. Assim, sem mais nem menos. Como era negro, claro, os policiais à paisana não acharam necessário se identificar nem perguntar coisas como, por exemplo, quem era. Como escrevi num artigo anterior, ser negro já é mais de meio caminho andado para ser visto como delinquente, lá e aqui. No dia seguinte ao jogo das Williams, ou posteriormente, não ouvi nenhuma menção daquele comentarista brasileiro sobre o episódio, nem algum comentário se solidarizando com o ex-tenista negro. Agora, se tivesse ocorrido com Jimmy Connors, Joe McEnroe ou qualquer outro ex-jogador branco, a coisa teria sido bem diferente.

  Há um detalhe, no entanto, que os jornais, no início, não explicaram. O suposto delinquente, descrito em princípio como ladrão, não era um assaltante perigoso que roubara alguém à mão armada ou com violência. Na realidade, como depois se soube, aquele sujeito teria comprado um celular com um cartão de crédito inválido. Tratava-se, então, de uma fraude, não de um crime violento. Questionado por uma repórter da rede CNN da razão dessa violência toda contra quem não teria cometido um crime violento, mas uma fraude de cartão de crédito, o chefe da polícia de Nova Iorque, Bill Bratton, se negou a responder “porque as averiguações estavam em curso” e não queria prejudicar a investigação! A justificação que deu é que o ex-jogador, que chegou a ser o quarto melhor tenista do mundo, parecia ser o “irmão gêmeo” do verdadeiro responsável pela fraude! Naturalmente, esse comentário causou espanto e só explicita e confirma o fato de a ação desses policiais foi motivada por racismo. Só faltou dizer algo como: “É... o problema é que todo negro se parece”.

  Estudos feitos durante anos mostram como o racismo afeta a visão que os norte-americanos brancos têm dos negros. O problema se agrava, naturalmente, quando esse preconceito toma conta das mentes de policiais brancos que têm a tendência de usar força letal contra negros, mesmo desarmados e pelas costas, e não contra brancos. O The Huffington Post menciona um estudo publicado no ano passado pelo Journal of Personality and Social Psychology, feito com oficiais da polícia brancos, que mostra que eles estão sempre mais inclinados a usar muito mais força contra suspeitos negros, jovens, do que contra jovens brancos. Não é por acaso que há mais de um ano não param de aparecer notícias dessa violência, semana após semana, mês após mês, contra negros — incluídas crianças — que terminam feridos, presos ou mortos. Enquanto os responsáveis... Bem, todos sabemos...

Policiamento seletivo

  O New York Times publicou nos últimos dias, em primeira página, um resumo de ações policiais que, com exceção de um caso, resultaram na morte de pessoas desarmadas, oito negros — sendo um deles um menino de 12 anos — e dois hispânicos. O artigo, na sua página da Internet, começa pela ação mais recente. 19 de julho: Samuel Dubose, negro, 43 anos, foi morto a tiros depois de ser parado por uma infração de trânsito (seu carro não tinha a placa dianteira). 10 de julho: Sandra Bland, negra, 28 anos, encontrada morta na sua cela, enforcada. A polícia alega suicídio. O motivo da abordagem policial que levou à detenção: não deu sinal ao virar numa esquina. Junho 5: um policial joga e prende uma adolescente negra contra o chão e aponta a arma para os jovens que a acompanhavam. Ela estava apenas de biquíni. 12 de abril: Freddie Gray, negro, 25 anos. Morreu, sob custódia policial, como consequência de uma lesão sofrida na coluna durante sua detenção. 4 de abril: Walter L. Scott, negro, 50 anos, morreu depois de receber um tiro nas costas disparado por um policial que o perseguia. 10 de fevereiro: Antonio Zambrano-Montes, 35 anos, hispânico. Morto a tiros por três policias enquanto levantava as mãos para se render. 22 de novembro do ano passado: Tamir Rice, menino negro de 12 anos, morto a tiros por um policial. O menino estava num parque com uma pistola de brinquedo. 9 de agosto, também do ano passado: Michael Brown, negro, 18 anos, morto por um policial em Ferguson, Missouri. 14 de julho: Eric Garner, negro, 43 anos, morto por asfixia durante seu arresto. Motivo da detenção: venda ilegal de cigarros. Durante sua detenção, gravada pelo celular de um amigo, repetia várias vezes: “não consigo respirar”. Junho 2, 2013: Ricardo Diaz-Zeferino, 34 anos, hispânico. Morto a tiros pela polícia ao ser confundido com um bandido. Também estava desarmado. De todos esses casos há vídeos que mostram a ação dos policias. Há outro episódio igualmente revoltante, que não foi registrado. É o do casal de negros crivado a bala por um grupo de policias por, também, uma infração de trânsito. O casal estava desarmado e os policiais, ao todo, dispararam mais de 130 balas.
  Também nos últimos dias, já no Brasil, a Folha de São Paulo publicou o resultado de uma pesquisa do instituto Datafolha. Aqui no Brasil, nas cidades com mais de 100 mil habitantes, a maioria da população tem medo da polícia militar. Numa pesquisa semelhante feita em 2012, mas em municípios com mais de 15 habitantes, 48% dos entrevistados declaravam ter esse temor. O perfil do cidadão que mais teme a polícia, segundo a mesma pesquisa: “jovens, pobres, autodeclarados pretos e moradores do Nordeste”.
  Entrevistas com brancos e com negros que viram os vídeos aos que me refiro no início deste artigo, nos Estados Unidos, mostram que, enquanto uns e outros se indignam, apenas os brancos ficam surpresos com a violência policial. Já os negros estão acostumados, pois desde crianças testemunham ações de policiais brancos contra eles e todos têm histórias, próprias ou de um parente, de maus tratos e abuso policiais.
  Denunciar o racismo faz parte de uma longa batalha, pois a discriminação contra o negro, assim como contra o pobre, está nas raízes da história de ambos os povos. O que para os brancos é apenas uma notícia no jornal, para os negros é a própria história que está sendo contada; é a experiência cotidiana de discriminação, violência e abusos sentidos em carne própria e desde sua mais tenra idade. Não é fácil escrever artigos como este, mas aqueles que temos a possibilidade de denunciar e lutar contra o racismo e a discriminação não podemos nos omitir nem devemos calar.

EUA: como tratar os menores de idade

  Às vezes penso que escrever, mais do que uma necessidade, é uma espécie de castigo. Porque é óbvio que todos nós gostaríamos de escrever sobre algo que não nos faça mal, ou que não nos esteja fazendo mal. Já escrevi dezenas de artigos que me deram muito prazer. Prazer ao concebê-los, ao lhes dar vida, ao redigi-los. Ao ver como iam crescendo e tomando corpo, forma e personalidade enquanto os desenvolvia. Queria muito poder escrever hoje sobre Borges, sobre Modigliani, mas não consigo. Há temporadas em que não podemos fugir do que nos afeta e parece nos perseguir dia e noite, noite e dia, semana a semana, mês após mês. Perguntaram-me hoje se já tinha escrito este artigo e respondi que não. Isso foi cedo, de manhã. Ainda, à tarde, estou lutando para poder sentar-me e fazê-lo.

  Poder-se-ia pensar que, hoje, escrevo por oportunismo. Mas quem acompanha meus artigos sabe que desde agosto do ano passado, aproximadamente, tenho me sentido obrigado a escrever e denunciar as barbaridades contra os negros nos Estados Unidos. Reconheço que estou cansado de ter de escrever sobre isso. Porque é um assunto que me toca intimamente. 

  Nestas últimas semanas tenho ficado preocupado com a situação no Brasil, como nunca deixo de estar, assim como com a greve dos funcionários públicos e com a dos docentes das universidades federais. Greve na minha própria universidade, na qual as regionais Goiás e Jataí já se encontram e na que as regionais de Catalão e Goiânia entrarão em julho e agosto.

  Como todos, tenho visto as manobras feitas pelo presidente do Congresso para reduzir a maioridade penal e o “oba-oba” das mentes mais retardatárias nos meios de comunicação aplaudindo esse verdadeiro insucesso.

  Senti a necessidade de, com pesar, escrever sobre o assunto. Mas, penso, o que adianta dar razões se as discussões no próprio Congresso mostraram que a mais alarmante irracionalidade está justificando aquela redução? 

  Encontrava-me naquela luta interna quando vi nos jornais e leio, mais uma vez, a forma miserável como são tratados os negros nos Estados Unidos. No www.dailymail.co.uk pode-se achar o vídeo em que o policial Terrance Saulny, com o pretexto de algemar uma adolescente negra já detida, de 16 anos, sim, isso mesmo, 16 anos, a atira contra a parede, a agride, e com a ajuda de outro “valente”, a joga contra o chão, a continua agredindo e a algema nos braços e pernas. No vídeo há uma advertência sobre o caráter “perturbador” das cenas. Não podia ser diferente. Enquanto via aquelas cenas não podia deixar de pensar que é exatamente isso que essas mentes brilhantes do nosso Congresso nacional e todas aquelas almas caridosas que os apoiam nos meios de comunicação querem. Bem sabem que, entre outras coisas, estão dando carta branca para que aqueles que já consideram os negros e os pobres delinquentes natos os tratem, no mínimo, da forma como essa adolescente negra é tratada no vídeo. Quando não, claro, se sintam com o direito de torturá-los e matá-los. 

  Sugiro ao leitor que leia o Mapa da Violência, publicado nestes dias, envolvendo adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil. Nesse relatório o leitor poderá ter uma ideia melhor do que está acontecendo com os jovens no Brasil que enfrentam a violência de todos os tipos. A isso se soma hoje a violência togada, a daqueles que foram eleitos para defender seus direitos e que pelas mais escusas motivações se voltam contra eles. Eu não queria argumentar com palavras. Basta ver as cenas desse vídeo, é uma espécie de crônica de uma violência anunciada contra os jovens de 16 e 17 anos aqui no Brasil e, claro, principalmente contra os jovens negros e pobres das favelas e da periferia. É a violência institucional anunciada — quando não da tortura e da morte anunciadas — “com base na lei” e no “clamor das ruas”. Revoltante.

Os números da ignomínia

  Leio hoje, sexta-feira 22, no Los Angeles Times: “No Brasil, a taxa de homicídios é alta, apesar da prosperidade crescente”. No The New York Times de ontem: “Brasil, farto com o crime, aceita sombriamente a violência policial”. Ao clicar na matéria aparece uma manchete que refere o “desespero” sobre as mortes causadas pela polícia. Na reportagem da ONG In SightCrime [sic], Organized Crime in America, “A Violência Policial Continua a Assolar o Brasil”, se faz referência a um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública segundo o qual, de 2009 a 2013, mais de 11 mil civis foram mortos pela polícia. Igualmente, o número de policiais mortos subiu de 264, em 2009, a 490, em 2013. Que o número de civis mortos seja de mais de 11 mil não nos deve causar mais repugnância que o dos 490 policias, só por este ser um número bem menor. O simples fato de pessoas inocentes serem mortas nos deve causar indignação, sejam estas civis ou policiais.

  Em relatório do Human Rights Watch, do ano passado, se afirma que o Brasil continua enfrentando “sérios desafios nos direitos humanos, incluindo mortes ilegais causadas por policiais, uso da tortura, sobrepopulação prisional, e contínua impunidade por crimes cometidos durante o período da Ditadura Militar”. 

  Numa manchete do Bloomberg View sobre América Latina lemos: “Brasil tem uma Ferguson por dia”, fazendo alusão ao jovem assassinado nessa cidade pela polícia de Missouri. A matéria cita este dado do relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e compara dados dos dois países: “a violência das polícias estadual e federal [brasileiras] reclamou mais vidas em cinco anos (11.200) do que as de todas as polícias dos Estados Unidos, combinadas, NOS ÚLTIMOS TRINTA ANOS (11.090)”! (Meus grifos) O autor da matéria cita um sociólogo especializado em crime e violência policiais que faz uma comparação entre as reações do público brasileiro e estadunidense: “O que é diferente [...] não é só o grau ao que se estende a violência policial, mas como as duas sociedades reagem: os Estados Unidos com protestos e tumultos, Brasil, com um dar-se de ombros coletivo”. 

  O fato é que há um estado de guerra, mais visível nas grandes cidades brasileiras, cujas causas são a miséria e o tráfico de drogas. A maior parte das vítimas dessa guerra é de inocentes, crianças, mulheres, trabalhadoras e trabalhadores, tanto civis como policiais. Mas as autoridades, os responsáveis por políticas públicas, os legisladores, maniatados por políticos de direita, ficam omissos e se contentam em ver como normal esse derramamento de sangue. Repito, de inocentes, pessoas honestas, tanto cidadãos comuns como policiais. 

  A diferença entre os dois países, por exemplo, está nisto: o Ministério da Justiça de lá (chamado de Departamento da Justiça) decidiu levar a cabo um inquérito sobre as práticas racistas da polícia de Ferguson, publicando há pouco um relatório condenatório. A prefeita de Baltimore, Stephanie Rawlings-Blake, por sua vez, solicitou ao mesmo Ministério da Justiça uma investigação exaustiva da polícia dessa cidade motivada pela morte de mais um negro que estava sob custódia policial. Ela pediu que fossem analisadas as práticas de uso de força excessiva, policiamento discriminatório, falsos arrestos, revistas ilegais e detenções.

  A ONG In SightCrime faz também uma comparação entre Brasil e os Estados Unidos. Referindo-se aos números de 2012, em que no Brasil houve 1890 civis mortos pela polícia, no mesmo período, nos Estados Unidos, com uma população SESSENTA POR CENTO maior e com um número muito superior de armas em circulação, o número de civis mortos pela polícia foi de 410. Assim, apesar de a população dos Estados Unidos ser 60% maior, o número de civis mortos pela polícia, aqui no Brasil, é mais de quatro vezes superior.

  Esses números explicam o resultado de uma pesquisa de Anistia Internacional publicado nesta semana. Os dados estão na página da BBC-Brasil sob a seguinte manchete: “Brasil lidera ranking de medo de tortura policial”. A pesquisa aponta que, ao serem questionados, 80% dos brasileiros “ainda teme por sua segurança ao serem detidos por autoridades”. É o maior índice dos 21 países pesquisados e quase o dobro da média mundial (44%). Por que será? Entre outras razões, é um resquício da impunidade pela anistia dos agentes da Ditadura Militar.

  Agora, volto à situação dos negros, lá e cá, que é o que motivou os artigos que venho escrevendo desde agosto do ano passado. O Bloomberg View considera que não é surpresa que, aqui no Brasil, o número de negros, mortos pela polícia, seja o dobro que o dos brancos. Assim, por exemplo, apesar de que no estado de São Paulo os negros representem 34% da população, eles constituem 58% do número de mortos pela polícia. É isso que leva à conclusão de que no Brasil ocorre uma Ferguson por dia.

  O propósito deste artigo, assim como do anterior e outros que eventualmente venha a escrever sobre o assunto, é chamar a atenção sobre uma situação intolerável de uma guerra não declarada na qual inocentes são diariamente assassinados, civis e policiais, crianças, mulheres, jovens e anciãos, trabalhadores e trabalhadoras — a maior parte desses civis sendo de negras, negros e pobres. Por isso, devemos ter muito cuidado com quem pensa que aquele que levanta sua voz para pôr o dedo numa mazela social está agindo contra a própria sociedade. Como quem escreveu isto: “aquele que fala mal da polícia acaba por falar mal da sociedade e consequentemente, de si mesmo”! Esse foi um dos “raciocínios” de um leitor que leu enviesadamente meu último artigo e repete aquela perversa e intolerável palavra de ordem dos ditadores: quem falava contra a Ditadura brasileira falava contra o Brasil. Daí, o triste, truculento, infame e prepotente: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”.

Enquanto os negros morrem por lá...

   Aqui não é diferente. O relatório Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial, de 2014, mostra que os jovens negros, aqui no Brasil, são as principais vítimas da violência. A proporção respeito da violência contra os jovens brancos, dependendo dos lugares, pode ser duas até treze vezes maior. Isto é, se for no Sudeste, o jovem negro tem o dobre de probabilidades de ser vítima da violência que o jovem branco. Já em alguns lugares do Nordeste, a probabilidade pode ser 13 vezes maior.

   Estudos publicados recentemente mostram que de 1980 a 2011 foram mortos mais de 28 mil jovens negros no país. Número três vezes maior que os homicídios de jovens brancos no mesmo período. Como o estudo abrange um período suficientemente longo, é possível ver que há uma tendência à diminuição do número de homicídios de jovens brancos e ao aumento do número de homicídio de jovens negros.

   Toda essa violência se enquadra numa política e num policiamento discriminatórios. Os negros já são vistos, não como inocentes, como exige a lei em qualquer país civilizado, mas como delinquentes natos que devem, antes, provar que são inocentes. Que os negros já são concebidos como delinquentes natos prova a atitude intimidatória e truculenta que diariamente vemos nos policiais de todas as partes do país quando abordam os negros que porventura têm a desgraça de estar por onde passam as patrulhas dessas “forças da ordem”.

   Quem lê o que está acontecendo nos Estados Unidos pode ver que há uma preocupação crescente com a forma como os policiais desse país concebem os negros. Lembro o leitor que escrevi um artigo sobre as práticas de tiro ao alvo num distrito policial na Florida: os alvos não eram essas cartolinas com círculos concêntricos, mas fotos de negros que alguma vez foram fichados pela polícia. Nestes dias foram publicadas algumas notícias sobre essa preocupação crescente. Em São Francisco, na Califórnia, mensagens de textos racistas entre membros da polícia provocou uma investigação sobre o problema. E o Ministério da Justiça desse país vai investigar as práticas racistas da polícia de Baltimore, como consequência dos fatos que vieram à luz ultimamente a raiz da morte daquele jovem negro que morreu sob custódia policial.

   Por lá se mata os negros, há uma reação da população e as autoridades são obrigadas a intervir, de alguma forma ou de outra. E enquanto os negros são mortos por lá e as autoridades intervêm, negros também são mortos por aqui. E as autoridades daqui? Bem, obrigado...

A caça aos negros nos Estados Unidos

   Nos últimos meses tenho escrito — acho que exclusivamente — sobre a situação dos negros nos Estados Unidos e, pelo que tem acontecido, usei termos como “caça aos negros”. Muitos poderiam pensar que tenho exagerado, apesar de eu procurar ser o mais ponderado na escolha das palavras. Bem, eu mesmo fiquei chocado — essa é o termo — ao ler uma matéria no The New York Times da última quarta-feira 20. A manchete, em primeira página, dizia simplesmente, e em jargão jornalístico: 1,5 Mi de Negros Faltando. Noutras palavras, em relação ao número de mulheres negras nos Estados Unidos, está “faltando” um milhão e meio de negros entre 25 e 54 anos. Mas, “faltando” como? Porque foram mortos ou porque estão presos. Em alguns lugares, como na cidade de Ferguson, Missouri, onde houve o assassinato daquele jovem que gerou tanta revolta, para cada 100 negras livres há 60 negros. Ou seja, 40% dos negros morreram ou estão presos. A proporção nacional para os brancos, não é de nos surpreender, é, de acordo à matéria, esta: para cada 100 brancas há 99 homens brancos naquela mesma faixa etária (dos 25 aos 54). 

   Desse milhão e meio de negros “faltando”, quase 600 mil estão presos. Isso significa que, no território daquele país como um todo, 1 entre cada 12 negros está preso. Entre outros grupos étnicos, a relação é de 1 para cada 60 homens. O estudo no qual a matéria se baseia mostra que entre crianças negras não existe diferença. Os negros começam a desaparecer na adolescência e a diferença já é marcada entre jovens negros de 20 e poucos anos.

   As consequências sociais e econômicas são óbvias. Mais mulheres negras sozinhas para manter suas famílias; um número maior de crianças negras nascidas fora do casamento; impossibilidade, por parte das mulheres negras, de ter a esperança de manter uma união estável e formar uma família etc. O estudo mostra que há mais negros faltando no território desse país do que residentes negros (homens) na cidade de Nova Iorque (cuja população é de quase oito milhões e meio de pessoas) ou mais de que a população total de homens negros (nessa faixa etária) morando nas cidades de Los Angeles, Filadélfia, Detroit, Houston, Washington e Boston juntas. Trocando em miúdos, o estudo mostra que para cada seis negros, entre 25 e 54 anos, mais de um está faltando por ter sido morto ou por estar preso.

   Terminarei o artigo com outra notícia. Acaba de acontecer em Parma, Missouri, uma comunidade rural de 700 habitantes que fica a 300 quilômetros da já conhecida Ferguson. Como reação ao que vem acontecendo nesses lugares, foi eleita a primeira mulher negra da cidade, Tyus Bird, de 40 anos. Ela derrotou Randall Ramsey que ocupou o cargo por mais de três décadas. Bem, pouco depois de ser declarada vencedora e antes de tomar posse, quatro dos seis oficiais da polícia local renunciaram, assim como outros dois funcionários, incluído aquele que deveria empossá-la no cargo. 

   Como podemos ver, nem coincidências nem exageros. É a contínua política de perseguição, discriminação e segregação que se reinventa e renova cada vez.

EUA e a contínua execução dos negros

  No último artigo mencionava a situação dos negros, residentes no condado de St. Louis, no Missouri, explorados pelas suas prefeituras que não encontraram melhor solução à crise que a de extorqui-los por meio de um perverso sistema de multas e taxas. Na sua maioria, multas por infrações de trânsito ou quaisquer outras infrações menores. Assim, aqueles cidadãos são presos, por meses, e não poucas vezes, sem terem cometido nenhum crime e a pesar de ser anticonstitucional, nesse país, a prisão por dívidas. Contudo, a situação daquele grupo de cidadãos não é diferente da dos negros de outros estados. Não é por acaso que, se a pessoa é negra e for abordada pela polícia, fuja ou tente fugir. Pois ela sabe que os policiais executam impunemente, alegam “legítima defesa” ou plantam contra o defunto as provas que acharem convenientes.

  É o que aconteceu no último domingo (5 de abril) na Carolina do Sul. O “crime” do cidadão — um negro de 50 anos — foi dirigir seu carro com o farol traseiro quebrado. Parado por um policial branco, desceu do carro, recebeu uma descarga de pistola elétrica, caiu no chão, conseguiu sair correndo para fugir da situação e, no vídeo feito por outro cidadão, observa-se o policial atirar OITO vezes quando sua vítima se afastava. Apesar de a vítima ter sido alvejada pelas costas, o policial alegou, não devemos nos surpreender, legítima defesa —“temia pela vida”, disse. Não fosse o vídeo feito do celular desse cidadão que passava, mais um policial branco iria se livrar de um homicídio covarde. O mesmo policial já tinha contra si uma acusação por ter usado força excessiva contra outro negro. 

  Antes de saber da notícia, hoje pela manhã, tinha decidido escrever sobre a mensagem que recebera no outro dia de uma estudante universitária norte-americana, Kelly McCarron, militante da Aliança Estudantil para a Reforma Prisional nos Estados Unidos. Ela levanta uma questão, sobre a qual eu já escrevera, e que toca num assunto que está sendo discutido aqui no Brasil: tratar menores como se fossem maiores de idade. “Quando era adolescente — diz Kelly — passei 7 meses na prisão. Pela primeira vez fui capaz de experimentar pessoalmente as falhas do nosso sistema criminal de justiça. Sem poder acreditar, observava os guardas trancar jovens na solitária por horas, dias ou mesmo semanas”.

  Os sistemas prisionais são, como sabemos, as melhores escolas do crime. Enviar jovens para que se misturem com criminosos experientes não é resolver os problemas da delinquência, nem da delinquência juvenil. É agravá-los. O fato é que, comprovadamente, as penas, por mais duras que sejam, não dissuadem ninguém de cometer crimes. Diminuir a maioridade penal não é outra coisa que dar asas para que, sob esse pretexto, as polícias dos Estados Unidos ou de qualquer parte exerçam seu “direito” de eliminar indesejáveis de outros grupos étnicos que, por serem tais, já nascem “bandidos”. 

  O normal é que fiquemos indignados com o que está ocorrendo nos Estados Unidos. Mas não podemos fechar os olhos ao que ocorre aqui. Em notícia publicada no Brasil em novembro de 2013, no portal do UOL, podemos ler: "As polícias Civil e Militar no Brasil mataram, em média, mais de quatro vezes mais civis que a dos Estados Unidos, em 2012, e mais de duas vezes que as polícias da Venezuela (...)”. Que prova, por exemplo, o que tem acontecido no Complexo do Alemão? Que deveríamos concluir ao ver jovens negros, mortos pelas costas, ou crianças alvejadas quando brincam na porta de sua casa, como o menino executado com um tiro na cabeça? Uma medida que salvaria muitas vidas inocentes, mortas pelos policiais, seria, por exemplo, se pensar em formas de descriminalização das drogas, ou de algumas delas. A guerra contra o tráfico, e isto é reconhecido mundialmente, está perdida. Uma medida como essa retiraria muito poder dos que agora exploram o consumo e distribuição de drogas. E nada há que prove que por ser legal o uso de uma droga todo mundo passe a consumi-la — como mostra o caso do consumo de álcool. Mas, sob o pretexto de que se luta contra traficantes, os mais pobres, os negros, continuam morrendo desde muito cedo.

  Que mostra tudo isso? Só podemos responder que vivemos num período de barbárie institucionalizada direcionada contra os negros e os mais pobres. E a vida continua, como se nada acontecesse. Assim como Aristóteles pensava que uns nascem para mandar e outros para obedecer, muitos pensam que uns nascem para viver e ser felizes, já outros, para sofrer e morrer. Alguns, ainda, pensam que quem nasce para mandar tem o direito, também, de mandar matar ou executar quem já nasceu para sofrer e ser morto.

Os negros alvos da exploração

   Já vi vários filmes cujas histórias acontecem no Centro-Oeste ou no Sul dos Estados Unidos e mostram em detalhes a relação entre o sistema judicial, e policial, e os negros. Um deles é considerado por muitos como o melhor filme de todos os tempos, “O Sol é Para Todos”, de 1962, dirigido por Robert Mulligan e estrelado por Gregory Peck. Esse filme trata do processo seguido contra um negro por supostamente ter estuprado uma branca, numa pequena cidade fictícia do Estado de Alabama, nos anos 30. Outro é “No Calor da Noite”, dirigido por Norman Jewison e estrelado por Sidney Poitier e Rod Steiger, de 1967. Neste filme, um negro (representado por Sidney Poitier) que passa por uma pequena cidadezinha do Mississipi e deve esperar a noite toda numa desolada estação pelo próximo trem, é preso por... sim, por ser negro. Ele resulta ser um policial da Filadélfia e termina ajudando o chefe da polícia local, um branco (representado por Rod Steiger), a resolver um homicídio. Esses e outros filmes mostram claramente como naquele país, como em muitos outros, ser negro é mais do que meio caminho andado para ser considerado delinquente, ser preso de forma arbitrária, quando não torturado ou executado por policiais, como nos casos recentes sobre os que tenho escrito nos últimos artigos.

   A morte pela polícia de um jovem negro em Ferguson, Missouri, que provocou protestos que se espalharam pelos Estados Unidos e que teve repercussão mundial, esconde uma situação que, apesar de tudo o que sabemos sobre racismo, é ainda difícil de acreditar.

   Pressionado pela reação cidadã, o Departamento de Justiça daquele país fez um levantamento da situação de Ferguson e de outros municípios do condado de St. Louis e publicou um informe condenatório denunciando as práticas de violência e abuso sistemáticos orquestrados contra os negros e os mais pobres dessa parte do Estado, que abrange mais de 80 municípios.

   É impossível não ficar indignado pela leitura desse relatório e pelos detalhes de uma política institucionalizada do sistema judicial em conluio com as polícias locais para, literalmente, depenar os membros da população mais pobre e majoritária desse condado: os negros. Na semana passada me referi à média de ordens de arresto em Ferguson por família: 3,2. E a dos arrestos efetivamente feitos: 2,2 por pessoa. Ferguson é afortunada, se considerarmos outras municipalidades. Na de Pine Lawn, de pouco mais de 23 mil habitantes, mais ou menos a mesma população que a cidade de Goiás, a média de ordens de arresto por pessoa chega a 7,3. O motivo das intimações e prisões não é a suspeita de se ter cometido um crime. É a de se ter cometido uma infração de trânsito, ou, como num caso, por permitir que o cachorro urine, no próprio jardim da casa, sem coleira!

   O fato de muitas fábricas ou empresas terem migrado para outros lugares fez que a receita desses municípios despencasse. A melhor forma que as autoridades municipais acharam para recuperar-se foi promover um verdadeiro festival de multas e taxas que tinham como alvo os mais pobres, a maioria negra da população. O curioso é que uma municipalidade pode ter 50 mil habitantes, ou 13, sim, treze pessoas, se o local tiver pelo menos seis casas. Seis casas e um mercadinho podem ser uma ‘municipalidade’. Isso explica que um condado, como o de St. Louis, tenha 81 municipalidades. A média nacional de policiais por pessoa, naquele país, é de 2,4 oficiais de polícia por 1.000 habitantes. Na pequena municipalidade de Beverly HIlls (Missouri), com menos de 600 habitantes e com 13 quarteirões ao todo, há 14, isto é, nove vezes a mais do que a média nacional. Em 2013, as municipalidades do condado de St. Louis arrecadaram, em multas e taxas, 45 milhões de dólares. Isso representa 34% da arrecadação de todo o Estado de Missouri.

   Observe-se, agora, como são cobradas as multas. Os cidadãos que receberam as multas devem comparecer num horário muito restrito. Primeiro chamam os que podem pagar 100 dólares ou mais. Não os que primeiro chegam ao local. Depois, os que podem pagar 90, depois 80 e, assim, até chegar às multas de 25 dólares. As portas não ficam abertas. No horário limite são fechadas e os atrasados receberão ordens de prisão. O mesmo acontece com quem não paga por não ter dinheiro. De modo que os mais pobres costumam chegar mais cedo para não correr o risco de não entrar, não pagar e serem presos. Bem, eles, os mais pobres, são obrigados a chegar mais cedo, mas são os últimos a serem atendidos e devem esperar mais de quatro horas num espaço pequeno, infestado de gente, para poder livrar-se da prisão. Todo esse abuso e essa prática perversa, note-se, apesar de a Corte Suprema de Justiça dos Estados Unidos, em 1983, ter declarado inconstitucional ser preso por não poder pagar dívidas. Assim, e como disse uma matéria da CBS em 2013, milhares de norte-americanos são presos, não por terem cometido algum crime, mas por não poder pagar multas de trânsito, taxas ou contas hospitalares. É uma forma como nesse país se explora um segmento muito bem selecionado da população: os negros e os mais pobres.

Preso por ser negro

   Leio, na página da organização norte-americana Equal Justice Under the Law (Justiça Igual Sob a Lei), a seguinte informação. (Ela permite compreender, em algo, os protestos e as mortes de negros em Ferguson, Missouri): “Por muitos anos, as cidades de Ferguson e Jennings têm usado as cortes locais, as prisões e as forças policiais para gerar milhões de dólares em ganhos às custas dos seus residentes mais pobres. A busca de ganhos tem mudado completamente a natureza do governo local e do policiamento. Por exemplo, em 2014, Ferguson teve uma média de 3,62 ordens de arresto por família e 2,2 arrestos por cada adulto, na maior parte das vezes envolvendo multas de trânsito.” Note-se, são milhões de dólares que, em algumas cidades, representa mais do 60% de sua receita! Perceba, também, e tente imaginar o que representa, que cada família recebeu mais de três ordens de arresto, e que, por adulto, as ordens executadas chega a 2,2. Ou seja, Cada adulto recebeu, no mínimo, duas ordens de arresto, apenas em 2014! 

   Olhando bem o que essa matéria diz, percebe-se que as prefeituras e a polícia sobrevivem à custa de gerar multas nos mais pobres (a maior parte por infrações de trânsito) que sabem que eles não podem pagar. Ao não poder pagar, eles são presos. Uma vez presos, as multas vão aumentando de valor, obrigando os familiares a se endividar com agiotas ou fazer o que for possível para livrar seus parentes das condições terríveis que as prisões em que estão detidos oferecem. Que condições são essas? Segundo a mesma organização, estas: “Seres humanos padecem em celas cobertas por sangue, muco e fezes sem acesso a sabonete, escovas de dente, dentifrício, lavanderia, cuidados médicos, exercício, comida adequada, luz, livros, televisão ou materiais legais. Eles são informados que serão mantidos na prisão indefinidamente, a menos que suas famílias consigam arcar com quantidades de dinheiro arbitrariamente estipuladas e constantemente mudando para poder pagar por sua liberdade. Presos desesperados e suas famílias pegam dinheiro emprestado de forma desesperada para poder ter seus seres queridos fora da prisão, só para ficar sabendo que suas dívidas aumentaram em virtude de novas taxas. O ciclo se repete por anos”

   Não há muito para explicar. Mas é curioso que o filme “Selma” lembra os 50 anos da marcha da cidade de Selma a Montgomery, pelos direitos civis dos negros. O tempo passa, e novas maneiras de se explorar os mais fracos e de se escravizar os antigos escravos são inventadas e implementadas. Depois as pessoas se perguntam por que os negros protestam nos Estados Unidos e por que ainda são caçados e mortos.

Criminalização das drogas e racismo

   Em várias oportunidades tenho dito que o que mais me impactou, desde criança, era a miséria, a pobreza, a desigualdade e o sofrimento da maioria das pessoas como consequência disso. Em países como os nossos, esses assuntos assumem, diríamos, certa coloração. Para dizê-lo de outro modo: a cor da pele está atrelada a isso tudo. É que, nos “nossos” países, e os não tão “nossos”, como nos Estados Unidos, os mais pobres são índios ou negros.

   Mesmo que o mundo em que estou inserido fosse de só brancos, ou só índios ou só negros, seria contra a criminalização das drogas. Por vários motivos. Entre eles, todos os citados no relatório das Nações Unidas, publicado no ano passado e apoiado por diversas personalidades internacionais, presidentes e ex-presidentes de Estado entre elas. Para citar algumas: o fracasso, nas últimas décadas, do combate ao consumo de drogas e o consequente crescimento e fortalecimento do crime organizado. Como muitas dessas personalidades sentenciam, numa frase: a guerra contra o crime organizado e o consumo de drogas fracassou. É, de fato, uma guerra perdida. Por um lado, por outro, existe o fato de a produção, comercialização e venda de bebidas alcoólicas não só não ser um crime, como seu consumo estar rodeado de certo charme e toque de distinção, como querem mostrar as propagandas de uísque, vinho, vodka, rum e outras bebidas. Apesar de o consumo de álcool, comprovadamente, ser tão nocivo — e tão mais prejudicial que o da maconha, por exemplo.

   No artigo anterior me referia a um dado que é mesmo surpreendente: apesar de os Estados Unidos representarem apenas 5% da população mundial, seus cárceres aprisionam 25% dos detentos do planeta. Muitos deles por estarem ligados ao consumo ou ao tráfico de drogas e, dentre eles, a maioria ser de negros ou hispânicos. O fato é que as populações mais pobres estão mais sujeitas à delinquência, e maior parte dos mais pobres são negros, índios, mestiços ou, como nos Estados Unidos, hispânicos. 

   Desde esta última quinta-feira (dia 26), na cidade de Washington já é legal o uso recreativo da maconha e se está considerando regulamentar sua distribuição e venda, como nos estados de Colorado e Washington. Na mesma semana passada, o uso recreativo da maconha já é legal, também, no Alaska.

   Enquanto nada seja feito, a desproporção enorme entre negros e brancos nas prisões seguirá se aprofundando. E assim, nos “nossos” e não tão “nossos” países, ser negro e pobre continuará sendo meio caminho andado para ser considerado um criminoso cujo fim é ser levado àquilo em que as prisões se converteram: em depósitos de negros e pobres sem esperanças de ser tratados nelas como outra coisa que não como animais infestados que merecem mesmo ter a vida miserável que essas prisões oferecem. 

Paradoxos da solitária

   Quando as pessoas pensam sobre a punição adequada para aqueles que cometem crimes hediondos, com requintes de crueldade, consideram várias possibilidades. A primeira punição na qual pensam costuma ser a pena de morte. Alguns, inclusive, defendem a lei do talião. Uma das razões que leva as pessoas a considerar que a pena de morte não é uma pena adequada é pensar quem cometeu um crime como esses não recebe a punição suficiente pelo que fez. Pois seu sofrimento acaba com a execução. Isso leva alguns a refletir sobre a cadeia perpétua. E, em casos especiais, o isolamento completo do réu, a solitária, como comumente se conhece esse tipo de castigo. Não é segredo para ninguém que quem é submetido a um isolamento absoluto não consegue manter sua sanidade mental por muito tempo. 
   Há casos, alguns famosos, em que os indivíduos ficam décadas na solitária, como ocorreu com Herman Wallace, um ex-integrante dos Panteras Negras, que ficou 41 anos na solitária, confinado em um espaço de menos de seis metros quadrados. Três dias depois de ser liberado por ordem de um juiz federal que declarou que seu julgamento foi inconstitucional, Herman Wallace faleceu.
   Como escrevi num artigo faz vários anos, quando os detentos perdem sua sanidade mental, o Estado termina castigando alguém por um crime que nem sabe que cometeu. Ou, dito de outra forma, termina castigando um pelo crime cometido por outro — aquele que o interno era antes de ser condenado à solitária e tinha plena consciência do motivo do castigo.
   O fato é que ninguém é condenado pelo Estado à solitária por este ou aquele crime. A solitária não é um castigo previsto em lei. O isolamento total é um castigo determinado pelas direções dos presídios a presos que elas consideram extremamente violentos, a membros de gangues ou a quem matou outro prisioneiro ou algum guarda. Este fenômeno é comum nos Estados Unidos que, apesar de representarem o 5% da população mundial, mantêm nas suas prisões o 25% dos detentos do mundo inteiro. Calcula-se que esse país mantém 81 mil prisioneiros na solitária.
   O grave é que muitos deles não foram condenados a cadeia perpétua — como talvez muitos, como eu mesmo, poderiam pensar. Isso significa que, por exemplo, em casos de estupradores seriais, condenados apenas a alguns anos, eles podem voltar às ruas depois de passarem anos na solitária e terem sido mentalmente afetados por isso.
   Outra situação paradoxal — e de qualquer ponto de vista esdrúxula e incompreensível — é que milhares de detentos não estão na solitária por terem cometido crimes graves, hediondos nem muito menos. Muitos estão aí por motivos fúteis, por razões políticas ou mesmo pelo racismo das autoridades prisionais que têm autonomia para impor “medidas disciplinares” que dependem unicamente de sua discrição.
   De modo que o Estado prende um indivíduo, o põe na solitária por anos, o transforma num ser sem autocontrole ou equilíbrio mental, provoca nele profundos ressentimentos e depois o libera para que todo o ódio acumulado e os transtornos sofridos por ele sejam direcionados contra qualquer um, seja ancião, 
jovem ou criança.
   Do anterior resulta, então, que o Estado recebe uma pessoa e, em lugar de pensar na sua reabilitação, o castiga de tal forma que o torna pior do que entrou para liberar depois um indivíduo mais violento e com um desejo de vingança que seguramente não tinha quando entrou na prisão. Pois é, esses são alguns dos paradoxos das políticas carcerárias e suas práticas perversas, não só contra os detentos, mas contra a própria sociedade.

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Tiro ao alvo... negro

   O título não é uma contradição, nem um trocadilho sem graça. É mais um triste capítulo na contínua realidade de discriminação e perseguição contra os negros.

   Costumo escrever sobre algum assunto que me preocupa ou algum fato marcante. E outro era o assunto sobre o qual iria escrever hoje. Tratava-se de uma movimentação nos Estados Unidos de empresas que querem aumentar seus ganhos ao preço de restringir a cópia de livros que, no mundo inteiro, são de domínio público. Obras escritas há mais de 75 anos, nas mais diversas áreas, que as grandes mentes nos legaram e que podem ser obtidas por meio da Internet. Algumas delas, como as de Homero e Hesíodo, têm aproximadamente 2800 anos.

   Mas, diante de uma notícia que mostra, mais uma vez, o ódio intestino que se tem contra os negros, não podia deixar de escrever sobre isso. Ocorreu na Florida, em Miami. Trata-se, de novo, de um episódio envolvendo policiais norte-americanos que, ultimamente, têm acirrado sua perseguição contra os negros, matando inocentes, sejam adultos, jovens ou mesmo crianças. Em alguns casos, envolvendo-se em perseguições inconcebivelmente desproporcionais — como foi o caso, comentado nesta coluna, de um casal de negros que foi perseguido por mais de 60 viaturas da polícia. Eles morreram crivados a balas, mesmo desarmados, dentro do próprio carro.

   Uma negra, sargento da Guarda Nacional dos Estados Unidos, foi num campo de prática de tiro. Ao chegar lá, ficou chocada ao ver que os alvos não eram os costumeiros desenhos, mas de negros. E ficou estarrecida ao ver que uma daquelas fotos nos alvos era de seu irmão que, quando jovem, tinha sido preso. Ela, naturalmente, veio a público para denunciar essa prática condenável de qualquer ponto de vista. Numa declaração à rede de televisão NBC, o irmão da sargento, o que está numa das fotos, disse: “aqueles que se supõe estarem ali para nos proteger, nos estão usando como alvos”. Pelo visto, os policiais norte-americanos não simplesmente atiram para matar os negros, praticam antes nos campos de treinamento atirando contra suas imagens.

   O chefe da polícia, no entanto, defende seus comandados alegando que essa é uma prática comum e que serve para ajudar no reconhecimento de criminosos. O fato é que o irmão da sargento cumpriu pena faz QUINZE anos. Só está entre as outras fotos, exclusivamente de negros, por ele, também, ser negro — e não interessa à polícia se cumpre pena, se já cumpriu, nem se é um homem livre e vive uma vida honesta. Pois ser negro já é todo — e não meio caminho andado — para ser considerado criminoso pelos membros das “forças da ordem”. O chefe da polícia disse também que nenhuma lei foi violada. Nenhuma!? Declarações das polícias de outros lugares, não obstante, incluído um ex-agente do FBI, afirmam que, obviamente, a prática comum é utilizar imagens de silhuetas, ou rostos gerados por computador, jamais de seres humanos reais, de um grupo particular de pessoas e, certamente, jamais de membros de minorias. Mas é isso que aquele chefe de polícia considera natural.

   Enquanto isso, e noutro lugar da Florida, um jovem negro, enquanto, sentado, esperava algemado que o policial branco preenchesse a papelada para ser preso, viu que o policial passou mal e caiu da cadeira, desmaiado. A primeira reação que se pode observar no vídeo da câmera da própria delegacia é que o jovem negro se levanta e começa a gritar chamando outros policiais e pedindo auxílio. Sua reação salvou a vida do policial. Esse jovem negro que, talvez depois, tenha sua foto posta como alvo para policiais praticarem sua pontaria. É isso mesmo...

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