quinta-feira, 5 de julho de 2018

Para que escrever um texto


Escrever, como compor ou pintar, talvez seja o único meio para escapar da nossa sanidade

            Talvez seja necessário olhar de outros ângulos a questão do por que e como escrever um texto. Quiçá a pergunta inicial deva ser ‘para que escrever um texto’. Provavelmente deveria ter começado por ela. Mas a pergunta que me foi feita (“como escrever um texto”) pressupunha um contexto específico que explicava implicitamente o ‘para que’. Na academia o ‘para que’ se subentende. Sabemos que tudo se faz, em última instância, para aprovar os cursos.
            Mas, e se fosse para outra coisa, para que seria? Talvez esse outro ‘para que’ seja mais importante. O que me obriga a escrever aqui uma espécie de antidiscurso, um antiartigo. Quem não pode deixar de pensar e ver as coisas de outros ângulos dificilmente entenderá que um texto deva ser escrito para se aprovar cursos. Saiamos da academia um pouco. Pois dentro ou fora dela há um outro ‘para quê?’, um tão importante quanto outros porquês.
            Vivenciamos o mundo e ao fazê-los vamos incorporando suas mazelas, suas desgraças, suas dúvidas e incertezas. Enjoa-nos o que vemos, o que ouvimos. Somos testemunhas de crimes que não prescrevem. Aqueles que se perpetram contra a inteligência, contra o espírito. Só podemos pensar, refletir, com a mão, para não sermos cúmplices da mesquinhez do dia-a-dia. Para que ela não nos roube, não nos arranque aqueles momentos de lucidez agônica, mas nem por isso infeliz. Para socorrer a lucidez dos lampejos ocasionais que iluminam os efêmeros momentos da nossa transitoriedade. Escrevemos, assim, para mantê-los vivos, mesmo que seja na memória grafada, na lembrança que se esconde por trás das linhas. A recordação do instante em que não soçobramos, sobrevivemos à mediocridade.
            Por outro lado, a própria escrita é uma luz, mesmo que seja um opaco iluminar que procede de um fogo tênue, mas não fátuo. Se olharmos para o nosso passado o veremos ameaçado de sombras, da escuridão que se apodera das lacunas claras dos nossos melhores momentos. Escrevemos para manter acesos os pavios de miseráveis velas que vão marcando o lugar em que nossos passos se detiveram e paramos para pensar.
            Somos testemunhas, também, de bons momentos, de cenas sadias e ricas espiritualmente. Não só de miséria vive o homem. Mas pensar... pensar só o fazemos nos momentos mais difíceis. Longe, do utilitarismo estreito, os momentos mais difíceis não necessariamente são aqueles em que nos faltam coisas, mas esses em que nos faltam respostas.
            Escrevemos por mil razões... porque estamos fartos, porque estamos perdidos, porque ..., enfim, não podemos não pensar. Sei que uns conseguem não pensar — talvez a maioria. E como escrever dependerá mais de nossas limitações do que de qualquer outra coisa. Mas, longe dos fins imediatistas, escrevemos para nos manter vivos, para nos sentir vivos. Para negar a obviedade de estarmos entre mortos-vivos, que olham, e olham, e só olham... vazios de tristezas, desprovidos de alegrias, desgarrados de emoções. Olham ontem, como olham hoje e olharão amanhã... despidos de idéias... Escrevemos porque não somos animais. Talvez para afirmarmos nossa humanidade. Escrevemos, como outros compõem ou esculpem, porque assim lutamos contra nossa própria insignificância. Escrevemos porque sangue corre pelas veias, porque nossa bile se derrama, porque os sucos gástricos nos produzem úlceras, porque os outros nos produzem lacerações. Porque não agüentamos mais. Porque não podemos vomitar o tempo todo. Escrevemos para escapar da nossa normal insanidade. Para nos aferrar ao último mastro que afunda. Por que e para que escrevemos... bom, no fundo... porque não podemos evitá-lo. Porque, quando menos o esperamos, um texto nos tira do inferno.

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