Escrever, como compor ou pintar, talvez seja o único meio para escapar
da nossa sanidade
Talvez
seja necessário olhar de outros ângulos a questão do por que e como escrever um
texto. Quiçá a pergunta inicial deva ser ‘para que escrever um texto’. Provavelmente
deveria ter começado por ela. Mas a pergunta que me foi feita (“como escrever
um texto”) pressupunha um contexto específico que explicava implicitamente o
‘para que’. Na academia o ‘para que’ se subentende. Sabemos que tudo se faz, em
última instância, para aprovar os cursos.
Mas,
e se fosse para outra coisa, para que seria? Talvez esse outro ‘para que’ seja
mais importante. O que me obriga a escrever aqui uma espécie de antidiscurso,
um antiartigo. Quem não pode deixar de pensar e ver as coisas de outros ângulos
dificilmente entenderá que um texto deva ser escrito para se aprovar cursos.
Saiamos da academia um pouco. Pois dentro ou fora dela há um outro ‘para quê?’,
um tão importante quanto outros porquês.
Vivenciamos
o mundo e ao fazê-los vamos incorporando suas mazelas, suas desgraças, suas
dúvidas e incertezas. Enjoa-nos o que vemos, o que ouvimos. Somos testemunhas
de crimes que não prescrevem. Aqueles que se perpetram contra a inteligência,
contra o espírito. Só podemos pensar, refletir, com a mão, para não sermos
cúmplices da mesquinhez do dia-a-dia. Para que ela não nos roube, não nos
arranque aqueles momentos de lucidez agônica, mas nem por isso infeliz. Para
socorrer a lucidez dos lampejos ocasionais que iluminam os efêmeros momentos da
nossa transitoriedade. Escrevemos, assim, para mantê-los vivos, mesmo que seja
na memória grafada, na lembrança que se esconde por trás das linhas. A
recordação do instante em que não soçobramos, sobrevivemos à mediocridade.
Por
outro lado, a própria escrita é uma luz, mesmo que seja um opaco iluminar que
procede de um fogo tênue, mas não fátuo. Se olharmos para o nosso passado o
veremos ameaçado de sombras, da escuridão que se apodera das lacunas claras dos
nossos melhores momentos. Escrevemos para manter acesos os pavios de miseráveis
velas que vão marcando o lugar em que nossos passos se detiveram e paramos para
pensar.
Somos
testemunhas, também, de bons momentos, de cenas sadias e ricas espiritualmente.
Não só de miséria vive o homem. Mas pensar... pensar só o fazemos nos momentos
mais difíceis. Longe, do utilitarismo estreito, os momentos mais difíceis não
necessariamente são aqueles em que nos faltam coisas, mas esses em que nos
faltam respostas.
Escrevemos
por mil razões... porque estamos fartos, porque estamos perdidos, porque ...,
enfim, não podemos não pensar. Sei que uns conseguem não pensar — talvez a
maioria. E como escrever dependerá mais de nossas limitações do que de qualquer
outra coisa. Mas, longe dos fins imediatistas, escrevemos para nos manter
vivos, para nos sentir vivos. Para negar a obviedade de estarmos entre
mortos-vivos, que olham, e olham, e só olham... vazios de tristezas,
desprovidos de alegrias, desgarrados de emoções. Olham ontem, como olham hoje e
olharão amanhã... despidos de idéias... Escrevemos porque não somos animais.
Talvez para afirmarmos nossa humanidade. Escrevemos, como outros compõem ou
esculpem, porque assim lutamos contra nossa própria insignificância. Escrevemos
porque sangue corre pelas veias, porque nossa bile se derrama, porque os sucos
gástricos nos produzem úlceras, porque os outros nos produzem lacerações.
Porque não agüentamos mais. Porque não podemos vomitar o tempo todo. Escrevemos
para escapar da nossa normal insanidade. Para nos aferrar ao último mastro que
afunda. Por que e para que escrevemos... bom, no fundo... porque não podemos
evitá-lo. Porque, quando menos o esperamos, um texto nos tira do inferno.
Excelente texto!
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