O dia em que as drogas
venceram a inteligência
Em
várias oportunidades tenho manifestado minha alegria por ver como o nível dos
estudantes que entram no curso de filosofia melhora a cada ano. Além de virem
dos seus colégios melhor preparados, entram cheios de esperanças. Muitos sonhos
e poucos vícios. É o caso da maioria deles. Poucos vícios, em todos os
sentidos. Pois há os vícios acadêmicos, mas há também os outros.
O
ano que termina poderia ter sido um daqueles em que o balanço final é positivo,
e altamente estimulante. Para mim, particularmente, por ter oferecido dois
cursos, um em cada semestre, que foram sugestões de alunos. Destaca-se o
primeiro, um curso de Filosofia da Arte em que os alunos tinham de escrever
textos, originais, defendendo fundamentalmente suas próprias idéias, sobre os
diversos problemas que surgem quando queremos conceitualizar, definir ou mesmo
entender o que é arte, belo, beleza etc. Recebia os textos antes da aula, os revisava,
selecionava e os lia para o resto dos estudantes. Dessa forma motivava novas
discussões, objeções, réplicas e tréplicas, sempre num nível elevado e
respeitoso — o que verdadeiramente é fazer filosofia. O nível dos textos motivou
a iniciativa de um dos estudantes, vindo da área de computação, de pôr esses
textos numa página na internet. Recebi feliz a ideia e assim foi feito. Isso ocorreu no primeiro semestre. Um dos
estudantes que mais se destacou foi o que terminou escrevendo mais textos.
Naquela página podemos ver estudantes que enviaram três. O estudante a que me
refiro enviou cinco.
Ogner
F. Schaiblich destacou-se, desde seu ingresso no curso de filosofia, por várias
coisas. Por uma inteligência privilegiada, e por um caráter reservado. Talvez
reservado demais. Fez comigo disciplinas no primeiro ano e demonstrou uma
capacidade especial para a compreensão dos problemas filosóficos e, sobretudo,
para a escrita. Escrevia de forma clara, correta e, ao mesmo tempo, profunda;
escrevia de um jeito que, às vezes, beirava o poético. Isso foi ficando claro à
medida que escrevia e me entregava seus curtos ensaios para Filosofia da Arte.
No
semestre que acaba de terminar, o Ogner se matriculou noutra disciplina que
ofereci por sugestão de alunos. Era Pensamento Crítico. O semestre começou bem.
Contudo, não terminou como iniciou. O Ogner foi ficando cada vez mais retraído.
Triste, eu diria, e melancólico. Um dia me pediu informações para trancar a
matrícula. Respondi que já era tarde demais para isso, perguntando a razão do
pedido. Queria viajar. Conhecer outros países. Não dei mais atenção naquela
hora. Fiquei, no entanto, pensando, estranhado, e ao mesmo tempo preocupado. Aproximei-me
dele, um par de semanas depois, para lhe aconselhar que esperasse terminar o
curso e, só então, fazer a viagem que queria. Para minha surpresa, respondeu,
de forma respeitosa, mas lacônica e taciturna, que era “uma decisão que já
estava tomada”. Fitou-me profundamente, com esse olhar de um azul profundo e
penetrante que me deixou surpreso. Parece que não estávamos falando do mesmo
assunto. Minha pergunta não era tão grave assim, mas a resposta era de uma
gravidade inusitada.
Quando
entrou no curso, segundo soube pelos seus colegas, o Ogner nem cerveja bebia. Lamentavelmente,
entrou em contato com pessoas que o levaram por outros caminhos. Por rumos nos
quais se ingressa e cuja saída poucos a conhecem. Por viagens que, muitas
vezes, não têm volta. Conheceu pessoas que, com certeza, não têm a metade da
capacidade intelectual que o Ogner tinha e que nunca vão ser nada na vida, a
não ser perdedores e que não passam de covardes. Perturbado, melancólico
demais, cada vez mais taciturno e talvez depressivo, o Ogner tirou sua vida no
meio da semana passada. Foi enterrado em meio de seus familiares e seus
verdadeiros amigos. Os covardes que precipitaram esse final, claro, brilharam
pela sua ausência. Uma vida como essa, um jovem assim, uma inteligência como a
dele, não poderiam jamais ter sido derrotados pelas drogas. Mas foram. E de
alguma forma, todos nós somos responsáveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário