Hegel dizia
que o filósofo é filho de sua época, e que ele não pode escapar a ela assim
como ninguém pode sair da sua própria pele. De alguma maneira, os tempos, as
épocas, têm seus correspondentes filósofos. O que pode soar esquisito. Em que
sentido o tempo pode produzir pessoas que lhe correspondam. A crise gerada pela
perplexidade que provocou o aparecimento das geometrias não euclidianas, por
exemplo, produziu um determinado tipo de trabalho filosófico: o de fundamentar
a geometria e, em geral, as matemáticas. Essa crise gera, poderíamos dizer, o
fundamentalismo lógico-matemático e seus representantes, Frege e Russell, o que,
por sua vez, leva ao fundamentalismo semântico do Wittgenstein e dos membros do
Círculo de Viena, no início do século XX. A crise entre os Estados Unidos e a
União Soviética, no início dos anos 60, não é mais que um aspecto de uma luta
que ocorria em várias frentes. E os filósofos, naturalmente, não escaparam
dela. O trabalho do filósofo francês, nascido na Argélia, um 16 de outubro de
1918, está, como poucos, inserido nessa luta em que o mundo todo estava, de uma
ou de outra maneira, envolvido.
Dificilmente,
nas décadas de 60 e 70, alguém poderia escapar dos ventos revolucionários — ou contrarrevolucionários
— que sopravam por todas as partes, anunciando tempos ainda mais tormentosos. Foi
o que acontecia na América Latina, que vivia assolada por golpes de Estado. Aos
seis anos (em 1961), eu mesmo, vi passar aviões dirigindo-se em picada ao
edifício do Congresso para metralhá-lo. Era um golpe contra Carlos Julio
Arosemena Monroy, que tinha ousado, não só apoiar Fidel Castro, como convidá-lo
ao país.
Assim, essa
época produziu pensadores marxistas, como Louis Althusser, e ferrenhamente
antimarxistas, como o filósofo da ciência Karl Popper. Por coincidência, a
semana passada mostrei, em sala de aula, o caráter visceralmente ideológico de
um texto de Karl Popper escrito contra o pensamento marxista, Miséria do Historicismo, cuja segunda
edição foi publicada em 1961. É um livro eivado de recursos retóricos, dos mais
sutis aos mais óbvios.
Por sua
vez, Althusser também escreveu, publicou textos influentes e manteve teses, no
mínimo, chocantes. Chocantes para quem tivesse feito uma leitura séria de Marx,
pois Althusser fazia passar como de Marx teses que jamais poderiam ter sido do
pensador alemão. Refiro-me, especificamente, a suas teses sobre ideologia. Mas
como penso ser verdade que Marx é — e naqueles anos certamente era — um dos
autores mais citados e o menos lido, poucos poderiam perceber que havia uma
grande distância entre as teses do pai do materialismo histórico e dialético,
por um lado, e Althusser, por outro. Li Althusser na minha graduação em
filosofia, e tive uma péssima impressão. Já escrevi sobre isso e não quero me
repetir. Prefiro falar sobre uma impressão posterior, a que tivera depois de
ler sua autobiografia — que, por vontade dele, devia ser publicada postumamente—:
O Futuro Dura Muito Tempo (lançada no
Brasil pela Companhia das Letras).
O que está
por trás do texto é um episódio ocorrido em 1980, quando ele estrangulou sua
mulher. Lembro ter estado ainda no meu país e lido a notícia em primeira
página. Naturalmente, fiquei chocado. Pensei que teria sido num súbito acesso
de cólera. Mas não tinha sido. Vim saber disso mais de dez anos depois, já no
Brasil, quando, precisamente, li sua autobiografia.
Com ela
aprendi muita coisa sobre o filósofo. Não mudei minha opinião sobre suas teses
não serem compatíveis com as de Marx. Pelo contrário, vi aí a confirmação das
minhas suspeitas — aquelas que apareceram nos anos da minha graduação em
filosofia. No entanto, fiquei comovido pelo drama humano envolvido.
Mais de
vinte anos nos separam daquele triste episódio. Já não estão vivos nem o
marxista Althusser nem o antimarxista Popper. A luta ideológica parece ter
desaparecido. Não há mais debates sobre a possibilidade — ou conveniência — do
mundo tornar-se socialista. A Cortinha de Ferro enferrujou, ruiu, caiu e
desapareceu. Resta só a cortina de fumaça do desperdiço do capitalismo global,
nos envolvendo, intoxicando, cegando. Ninguém parece querer enxergar muito
longe. Ou não queremos, ou não podemos. Talvez pela tirania da ideologia única,
a do capitalismo reinante. Quiçá por isso alguns filósofos dirijam suas
preocupações, não já para o todo, mas para o singular, o particular. Ou, pior
ainda, para aquilo que parece ser o resultado do mais individual dos interesses.
Aparentemente, o triunfo do capitalismo acabou nos transformando — fez de nós verdadeiros
indivíduos, egoístas e mesquinhos, não mais cidadãos do mundo.
(Artigo publicado no Jornal Opção em outubro de 2006)
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