sábado, 14 de julho de 2018

Os tempos e seus filósofos

Nos tempos do capitalismo mesquinho e global, até os filósofos se escondem no especialismo

            Hegel dizia que o filósofo é filho de sua época, e que ele não pode escapar a ela assim como ninguém pode sair da sua própria pele. De alguma maneira, os tempos, as épocas, têm seus correspondentes filósofos. O que pode soar esquisito. Em que sentido o tempo pode produzir pessoas que lhe correspondam. A crise gerada pela perplexidade que provocou o aparecimento das geometrias não euclidianas, por exemplo, produziu um determinado tipo de trabalho filosófico: o de fundamentar a geometria e, em geral, as matemáticas. Essa crise gera, poderíamos dizer, o fundamentalismo lógico-matemático e seus representantes, Frege e Russell, o que, por sua vez, leva ao fundamentalismo semântico do Wittgenstein e dos membros do Círculo de Viena, no início do século XX. A crise entre os Estados Unidos e a União Soviética, no início dos anos 60, não é mais que um aspecto de uma luta que ocorria em várias frentes. E os filósofos, naturalmente, não escaparam dela. O trabalho do filósofo francês, nascido na Argélia, um 16 de outubro de 1918, está, como poucos, inserido nessa luta em que o mundo todo estava, de uma ou de outra maneira, envolvido.

            Dificilmente, nas décadas de 60 e 70, alguém poderia escapar dos ventos revolucionários — ou contrarrevolucionários — que sopravam por todas as partes, anunciando tempos ainda mais tormentosos. Foi o que acontecia na América Latina, que vivia assolada por golpes de Estado. Aos seis anos (em 1961), eu mesmo, vi passar aviões dirigindo-se em picada ao edifício do Congresso para metralhá-lo. Era um golpe contra Carlos Julio Arosemena Monroy, que tinha ousado, não só apoiar Fidel Castro, como convidá-lo ao país.
            Assim, essa época produziu pensadores marxistas, como Louis Althusser, e ferrenhamente antimarxistas, como o filósofo da ciência Karl Popper. Por coincidência, a semana passada mostrei, em sala de aula, o caráter visceralmente ideológico de um texto de Karl Popper escrito contra o pensamento marxista, Miséria do Historicismo, cuja segunda edição foi publicada em 1961. É um livro eivado de recursos retóricos, dos mais sutis aos mais óbvios.
            Por sua vez, Althusser também escreveu, publicou textos influentes e manteve teses, no mínimo, chocantes. Chocantes para quem tivesse feito uma leitura séria de Marx, pois Althusser fazia passar como de Marx teses que jamais poderiam ter sido do pensador alemão. Refiro-me, especificamente, a suas teses sobre ideologia. Mas como penso ser verdade que Marx é — e naqueles anos certamente era — um dos autores mais citados e o menos lido, poucos poderiam perceber que havia uma grande distância entre as teses do pai do materialismo histórico e dialético, por um lado, e Althusser, por outro. Li Althusser na minha graduação em filosofia, e tive uma péssima impressão. Já escrevi sobre isso e não quero me repetir. Prefiro falar sobre uma impressão posterior, a que tivera depois de ler sua autobiografia — que, por vontade dele, devia ser publicada postumamente—: O Futuro Dura Muito Tempo (lançada no Brasil pela Companhia das Letras).
            O que está por trás do texto é um episódio ocorrido em 1980, quando ele estrangulou sua mulher. Lembro ter estado ainda no meu país e lido a notícia em primeira página. Naturalmente, fiquei chocado. Pensei que teria sido num súbito acesso de cólera. Mas não tinha sido. Vim saber disso mais de dez anos depois, já no Brasil, quando, precisamente, li sua autobiografia.
            Com ela aprendi muita coisa sobre o filósofo. Não mudei minha opinião sobre suas teses não serem compatíveis com as de Marx. Pelo contrário, vi aí a confirmação das minhas suspeitas — aquelas que apareceram nos anos da minha graduação em filosofia. No entanto, fiquei comovido pelo drama humano envolvido.
            Mais de vinte anos nos separam daquele triste episódio. Já não estão vivos nem o marxista Althusser nem o antimarxista Popper. A luta ideológica parece ter desaparecido. Não há mais debates sobre a possibilidade — ou conveniência — do mundo tornar-se socialista. A Cortinha de Ferro enferrujou, ruiu, caiu e desapareceu. Resta só a cortina de fumaça do desperdiço do capitalismo global, nos envolvendo, intoxicando, cegando. Ninguém parece querer enxergar muito longe. Ou não queremos, ou não podemos. Talvez pela tirania da ideologia única, a do capitalismo reinante. Quiçá por isso alguns filósofos dirijam suas preocupações, não já para o todo, mas para o singular, o particular. Ou, pior ainda, para aquilo que parece ser o resultado do mais individual dos interesses. Aparentemente, o triunfo do capitalismo acabou nos transformando — fez de nós verdadeiros indivíduos, egoístas e mesquinhos, não mais cidadãos do mundo.
(Artigo publicado no Jornal Opção em outubro de 2006)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Continuar lendo

Parmênides