quinta-feira, 5 de julho de 2018

Como produzir um texto


Como produzir um texto

Não é possível produzir filósofos, eles se inventam sozinhos

            Um aluno me pára no corredor e me conta que está com problemas na minha matéria. Quer que eu diga como produzir um texto. Trata-se de um aluno de uma disciplina que inventei, sobre a qual já falei e que num artigo anterior descrevi como antiacadêmica. O prefixo “anti” não necessariamente significa “contra”, pode ser usado como “em lugar de”. Assim, em lugar de uma disciplina em que iria discutir as teses dos grandes filósofos ou filósofas, decidi discutir com quem, sinceramente, considero futuros filósofos e filósofas. Proponho problemas (sobre arte, sobre valor) e levo os estudantes a se posicionarem sobre as dificuldades que aparecem, motivando-os para que escrevam, produzam textos próprios que preparam durante a semana e que me  entregam antes de cada sessão. Eu leio os textos em sala de aula e debatemos os — sempre diversos — enfoques, suas implicações, desenvolvimentos, problemas etc. Tenho recebido textos, sem exageros, primorosos. Tanto pela forma como pelo conteúdo. Mas, compreendo, num meio em que o aluno é preparado quase que exclusivamente para repetir — se não, simplesmente, recitar — as idéias dos grandes filósofos, fazer o oposto resulta muito difícil. Em que sentido ‘fazer o oposto’? No sentido de se assumir como filósofo, como pensador, como escritor, como produtor de idéias. De se saber capaz de reconhecer problemas e se debruçar para, pelos próprios meios, tentar resolvê-los. (Saber-se capaz de resolvê-los sem o recurso ao clássico, ao texto consagrado, ao filósofo insuperável e a tudo o que a tradição e a academia impõem como sacrossanto.)

            Como, então, produzir um texto? Um texto que se produz filosoficamente é um resultado. Algo há, e deve haver, que vem antes. Ele é uma conseqüência de algo. De quê? De uma reflexão que se originou de algum problema. Por menor que este seja. Algo nos incomodou. Alguém disse algo que nos produziu uma reação negativa, ou que nos surpreendeu por ser inusitado. Ou, então, ocorreu algo que nos força a tentar entender. Bem, as motivações para que se inicie uma reflexão filosófica são infinitas, como inúmeras são as teorias filosóficas fruto dessas motivações.
            Devemos, então, ter algum problema. O aluno tinha uma intuição interessante: é possível separar os valores da arte? Bem, aí temos uma questão. Que devemos fazer? O que esse aluno deveria fazer? Pensar sobre essa intuição e procurar se esclarecer sobre o que está pensando, sobre o que está ‘vendo’ na sua mente. Ele entendeu a idéia e me disse muito bem: “tentar me convencer sobre o que estou pensando?” Sim, exatamente. Pôr no papel, escrever, articular, transformar em idéias claras as reflexões que podem estar confusas na mente. Ele me disse que o mais difícil é começar. E isso é verdade. Nem sempre, claro, mas há ocasiões em que as primeiras linhas não saem. Mas, uma vez que as primeiras frases se materializam, outras as seguem. E, aos poucos, somos como que tomados por um frenesi criativo e as idéias borbulham na nossa mente, e não podemos parar de escrever. Uma idéia leva a outra, uma conclusão puxa outra, vemos como as idéias se relacionam, se entrelaçam, entrecruzam e, meio que surpresos, vemos teses se constituírem, hipóteses aparecem e argumentos se articularem num ritmo que nos impressiona pela força com que nos domina. Chega um momento em que somos tomados, levados, dominados por idéias que parecem se impor a nós, determinando nossas frases, nossos períodos, nossas palavras e conceitos. Até chegarmos num ponto, quase no final, em que, pasmos, descobrimos que não acreditamos no que achávamos acreditar momentos atrás, que aprendemos algo realmente novo, inusitado, surpreendente. E somos levados a dizer: “nunca imaginei que isso poderia ser assim!” Ou: “quando iria imaginar que ia defender esta tese!” Mas é isso que ocorre. Somos como que seqüestrados pela força de uma razão que parece ser independente, forçando-nos, impondo-se a nós e nos obrigando a tirar esta ou aquela conclusão, a defender esta ou aquela tese, mesmo que isso signifique o abandono de muito do que um dia pensávamos firmemente acreditar. Mas para que tudo isso ocorra devemos dar crédito a nossas idéias, a nós mesmos, considerar que somos capazes de criar, não só de assimilar o que algum outro pensou. Pois filósofo é aquele que num momento anterior não era nada e, por um turbilhão de reflexões, produz pensamento e se inventa a si próprio.

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