Hoje falava
para os meus alunos sobre o prazer que tenho tido ao ler Wittgenstein. Não
porque concordasse com ele, mas porque ele, mesmo muito jovem, ousava pensar
por si mesmo. Os últimos meses têm sido especiais. Estou lendo textos pouco
lidos desse grande pensador austríaco. Tenho lido seu diário, escrito entre
1914 e o início de 1917, assim como as conversas que teve com o famoso filósofo
da ciência Moritz Schlick e que foram transcritas pelo discípulo deste, Friedrich
Waismann, lá no final da década de 20. Há uma grande distância filosófica entre
esses textos. Uma mudança profunda.
Isso, entre
outras coisas, me fascina. O abandono de teses radicais de juventude e a adoção
de novas. É um desafio ler o jovem Wittgenstein. Mas, mesmo assim, é um prazer
lê-lo. Por quê? Bom, entre outras coisas, pela ousadia das teses. Apesar de
muito jovem, enfrenta as afirmações de grandes pensadores (filósofos e matemáticos)
e as critica com paixão, com força inusitada. Nos oito volumes do legado de
Wittgenstein, publicados pela editora alemã Suhrkamp, encontramos pouquíssimas
citações. O resto, idéias próprias, pensamentos originais. Trechos que mostram
audácia e autoconfiança. Como é bom ler alguém que gosta de dizer o que pensa.
Mesmo que isso represente ir contra a tradição — muito apesar de essa tradição
ter nomes considerados insuperáveis. Nomes que designam grandes gênios do
pensamento. Grandes gênios sujeitos às críticas de um jovem e ilustre
desconhecido. Pois isso era Wittgenstein quando, de 1914 a 1917, escreveu parte
do que viria a ser seu revolucionário Tractatus
Logico-philosophicus.
Muitas e
muitas páginas não são críticas. São pensamentos originais, criativos. E aí
está a beleza e o prazer que sua leitura me provoca. Mas não é só comigo que
isso acontece. Todos nós, quando abrimos um clássico, ou um bom livro, mesmo
que seja de alguém desconhecido, não podemos deixar de nos sentir levados ao
êxtase por trechos bem redigidos, bem pensados.
Que
coincidência, na semana em que escrevo estas linhas se cumpre mais um
aniversário do nascimento e também da morte do audacioso pensador que foi
Ludwig Wittgenstein. Nasceu um 26 de abril de 1989 e morreu, poucos dias depois
de seu aniversário, um 29 de abril de 1951.
Pois é,
como dizia, hoje, em sala de aula, falava sobre o prazer que tem me dado a
leitura dos textos desse pensador inconformado com a tradição.
Mas o dizia
num contexto não menos prazeroso. Decidi ousar e inventei dar uma disciplina
que, na verdade, é uma espécie de antidisciplina. Isso mesmo. Uma disciplina em
que não iria “lecionar” nada. Como faço quando dou aula de Platão, Descartes,
Kant. Não é, propriamente, uma disciplina; é uma oficina. Uma oficina
filosófica. Uma oficina de produção de textos. O pretexto é a beleza, o belo, a
arte em todas suas formas. O curso consiste em que eu levante certas questões
sobre beleza, e os alunos digam o que eles
pensam. Não o que eu penso ou algum
grande filósofo pensa.
Reconheço,
antes do início das aulas tinha medo do que iria acontecer. Pois não havia — eu
não iria fornecer — o típico programa da disciplina nem a clássica ementa. Pior
ainda bibliografia. É um curso sem programa, ementa nem bibliografia. Trata-se de,
simplesmente, refletir por si. Tendo como único instrumento o próprio
pensamento. Naturalmente, chego à aula e levanto questões, leio este ou aquele
trecho daquele grande ou não tão grande pensador. O texto é escolhido pelo que
propõe, não por quem o propõe. Não há, na disciplina, apelo à autoridade, apelo
à tradição. Digo o que penso e peço para os alunos refletir sobre isso e
produzir textos nos quais devem escrever o que realmente pensam.
Nas últimas
aulas tenho levado umas coleções de clássicos da pintura. Discuti essas
pinturas e passei depois os vários textos para eles se debruçarem sobre as
imagens que nos legaram os clássicos. Pedi que refletissem sobre elas e
escrevessem o que desejassem.
Hoje li
alguns desses textos em sala de aula. Textos cheios de reflexões próprias, sem
citações, sem pedantismos acadêmicos, sem lero-lero universitário. Eram eles,
meus estudantes, alunos e alunas, sendo eles mesmos, pensando por si próprios,
ousando, se atrevendo. E produzindo textos inteligentes, profundos, e, como se
não bastasse, belos. É que os filósofos podem estar mais perto do que
imaginamos.
(Texto publicado originalmente no Jornal Opção, em abril de 2006.)
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