sábado, 14 de julho de 2018

Wittgenstein e meus jovens alunos

Quem sabe procurar, encontra filosofia mais perto do que imaginaria

            Hoje falava para os meus alunos sobre o prazer que tenho tido ao ler Wittgenstein. Não porque concordasse com ele, mas porque ele, mesmo muito jovem, ousava pensar por si mesmo. Os últimos meses têm sido especiais. Estou lendo textos pouco lidos desse grande pensador austríaco. Tenho lido seu diário, escrito entre 1914 e o início de 1917, assim como as conversas que teve com o famoso filósofo da ciência Moritz Schlick e que foram transcritas pelo discípulo deste, Friedrich Waismann, lá no final da década de 20. Há uma grande distância filosófica entre esses textos. Uma mudança profunda.

            Isso, entre outras coisas, me fascina. O abandono de teses radicais de juventude e a adoção de novas. É um desafio ler o jovem Wittgenstein. Mas, mesmo assim, é um prazer lê-lo. Por quê? Bom, entre outras coisas, pela ousadia das teses. Apesar de muito jovem, enfrenta as afirmações de grandes pensadores (filósofos e matemáticos) e as critica com paixão, com força inusitada. Nos oito volumes do legado de Wittgenstein, publicados pela editora alemã Suhrkamp, encontramos pouquíssimas citações. O resto, idéias próprias, pensamentos originais. Trechos que mostram audácia e autoconfiança. Como é bom ler alguém que gosta de dizer o que pensa. Mesmo que isso represente ir contra a tradição — muito apesar de essa tradição ter nomes considerados insuperáveis. Nomes que designam grandes gênios do pensamento. Grandes gênios sujeitos às críticas de um jovem e ilustre desconhecido. Pois isso era Wittgenstein quando, de 1914 a 1917, escreveu parte do que viria a ser seu revolucionário Tractatus Logico-philosophicus.
            Muitas e muitas páginas não são críticas. São pensamentos originais, criativos. E aí está a beleza e o prazer que sua leitura me provoca. Mas não é só comigo que isso acontece. Todos nós, quando abrimos um clássico, ou um bom livro, mesmo que seja de alguém desconhecido, não podemos deixar de nos sentir levados ao êxtase por trechos bem redigidos, bem pensados.
            Que coincidência, na semana em que escrevo estas linhas se cumpre mais um aniversário do nascimento e também da morte do audacioso pensador que foi Ludwig Wittgenstein. Nasceu um 26 de abril de 1989 e morreu, poucos dias depois de seu aniversário, um 29 de abril de 1951.
            Pois é, como dizia, hoje, em sala de aula, falava sobre o prazer que tem me dado a leitura dos textos desse pensador inconformado com a tradição.
            Mas o dizia num contexto não menos prazeroso. Decidi ousar e inventei dar uma disciplina que, na verdade, é uma espécie de antidisciplina. Isso mesmo. Uma disciplina em que não iria “lecionar” nada. Como faço quando dou aula de Platão, Descartes, Kant. Não é, propriamente, uma disciplina; é uma oficina. Uma oficina filosófica. Uma oficina de produção de textos. O pretexto é a beleza, o belo, a arte em todas suas formas. O curso consiste em que eu levante certas questões sobre beleza, e os alunos digam o que eles pensam. Não o que eu penso ou algum grande filósofo pensa.
            Reconheço, antes do início das aulas tinha medo do que iria acontecer. Pois não havia — eu não iria fornecer — o típico programa da disciplina nem a clássica ementa. Pior ainda bibliografia. É um curso sem programa, ementa nem bibliografia. Trata-se de, simplesmente, refletir por si. Tendo como único instrumento o próprio pensamento. Naturalmente, chego à aula e levanto questões, leio este ou aquele trecho daquele grande ou não tão grande pensador. O texto é escolhido pelo que propõe, não por quem o propõe. Não há, na disciplina, apelo à autoridade, apelo à tradição. Digo o que penso e peço para os alunos refletir sobre isso e produzir textos nos quais devem escrever o que realmente pensam.
            Nas últimas aulas tenho levado umas coleções de clássicos da pintura. Discuti essas pinturas e passei depois os vários textos para eles se debruçarem sobre as imagens que nos legaram os clássicos. Pedi que refletissem sobre elas e escrevessem o que desejassem.
            Hoje li alguns desses textos em sala de aula. Textos cheios de reflexões próprias, sem citações, sem pedantismos acadêmicos, sem lero-lero universitário. Eram eles, meus estudantes, alunos e alunas, sendo eles mesmos, pensando por si próprios, ousando, se atrevendo. E produzindo textos inteligentes, profundos, e, como se não bastasse, belos. É que os filósofos podem estar mais perto do que imaginamos.
(Texto publicado originalmente no Jornal Opção, em abril de 2006.)

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