Texto
do áudio sobre “O que há” de Quine
1.
Para entender o que Quine mantém, é necessário
lembrar o problema do não-ser
introduzido por Parmênides e a tentativa de resolver o problema por
parte de Platão no Sofista. Em
236e─237a, o Estrangeiro diz a Teeteto:
É
que, realmente, jovem feliz, nos vemos frente a uma questão extremamente
difícil; pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo sem, entretanto, dizer com
verdade, são maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como ontem e
sempre. Que modo encontrar, na
realidade, para dizer ou pensar que o falso é real sem que, já ao proferi-lo,
nos encontremos enredados na contradição? Na verdade, Teeteto, a questão é de
uma dificuldade extrema. (Sofista,
236e-237a).
Teeteto pergunta “Por quê?” e o Estrangeiro lhe responde
assim:
A
audácia de uma tal afirmação é supor o não-ser como ser; e, na realidade, nada
de falso é possível sem essa condição. Era o que, meu jovem, já afirmava o
grande Parmênides, tanto em prosa como em verso, a nós que então éramos jovens:
“Jamais
obrigarás os não-seres a ser;
Antes,
afasta teu pensamento desse caminho de investigação.” (237a-b)
A motivação do diálogo O Sofista é a impossibilidade que Platão deveu ter encontrado ao
discutir com os sofistas, pois eles perceberam uma brecha na posição defendida
por Parmênides. Pois se for verdade que o não-ser é impensável, impronunciável,
inefável, como Parmênides afirma no seu poema, não seria possível negar ou
contradizer qualquer discurso sofístico ou qualquer discurso falso, pois para
refutar algo é necessário afirmar que o que se afirma não é; é necessário dizer
que o outro afirma algo que “não é assim” ou que “não existe” e, portanto, que o outro
defende algo que é falso. O sofista teria o subterfúgio de perguntar: o que não
é? E Platão responderia: isso que você disse não é. Nesse instante o sofista
lembraria que Platão era um seguidor de Parmênides e lhe teria respondido: “mas
não é verdade que Parmênides dizia que o nada não é, que o não-ser é
impossível, impensável, inefável, impronunciável? Então, o que eu acabo de
defender, se Parmênides estava certo, jamais poderia não ser”. Esta é a razão
por que Platão afirma que o sofista “se escondeu num refúgio inextricável”.
Platão, efetivamente, deve ter sido refutado muitas vezes pelos sofistas por
causa da defesa da tese de Parmênides sobre a impossibilidade do não-ser.
Vejamos como o próprio Platão, na voz do Estrangeiro, conta o que deve ter
acontecido:
Por
que então falar de mim por mais tempo? Para mostrar que fui vencido, agora como
sempre, nesta argumentação contra o não-ser? (239b) [...] Se te parece melhor,
não cogitemos nem de ti nem de mim. Mas, até que encontremos alguém capaz dessa
proeza, digamos que o sofista, da maneira mais astuciosa do mundo, se escondeu
num refúgio inextricável. (239c-d)
Na solução, Platão nega que ao dizer que
algo não é, estejamos pressupondo a existência do que estamos negando que
existe. Que estejamos, como diz Quine, nos comprometendo ontologicamente. No Sofista, Platão fornece o que chamo uma
teoria relacional do não-ser. Na sua solução, Platão vai negar que o não-ser
denote alguma substância, ou denote algo que exista por si. Mas não é o lugar
aqui para entrar nos detalhes de sua solução, apenas lembrar o problema do
não-ser e suas derivações posteriores, tanto na filosofia medieval como na
contemporânea. Quine vai dar uma solução semelhante à de Platão no que diz
respeito à insubstancialidade do não-ser: ao nomear algo e dizer que esse algo não
existe não estamos pressupondo que a mera nomeação já o ponha na existência em
algum sentido. Não estamos, ao afirmar que algo não é, nos comprometendo
ontologicamente, isto é, pressupondo tacitamente que o que negamos ser, seja,
que o que negamos existir, exista. Assim, as primeiras páginas do artigo estão
para discutir esse assunto e negar a tese de que só porque mencionamos ou
nomeamos algo, seja “Pégaso” ou o “quadrado redondo”, o que nomeamos ou
mencionamos deva, só por esse ato de nomeação, ter algum tipo de existência.
2.
Na página 6 do PDF, Quine critica com razão a
tese de que contradições não têm sentido, incluída a prova por redução ao
absurdo, fundamental para fazermos lógica ou matemática. É a tese, por exemplo,
encontrada no primeiro Wittgenstein, para quem tanto as tautologias como as
contradições carecem de sentido. Só que na linguagem cotidiana dizemos coisas
como “ou você faz sua tarefa ou você faz sua tarefa” para mostrar para a
criança que não tem opção a não ser fazer a tarefa, e ela entende perfeitamente
o sentido do que estamos querendo dizer. Costumamos, também, afirmar qualquer
contradição para mostrar a impossibilidade de algo. Além do uso na linguagem
coloquial, tanto na lógica como nas matemáticas a prova por redução ao absurdo
é um recurso fundamental para se provarem teoremas.
3.
Na página 7 do PDF, Quine recorre à teoria das
descrições definidas de Russell para mostrar como fugir do pressuposto
existencial de afirmações do tipo: “o quadrado redondo é tal coisa”, “Pégaso é
um cavalo alado” ou qualquer afirmação sobre algo inexistente ou cuja
existência física seja impossível. Se Parmênides
estiver certo, ao dizer que algo não é já estamos “pensando no que não é”, o
que é contraditório. Aqui a tese problemática por trás da posição de Parmênides
é esta: só por pensarmos em algo, esse algo deve passar a, de alguma forma, ser
ou existir. Chamo a atenção para este fato: Russell, na sua posição de início
do século 20, posição realista (que em lógica se chama ‘logicista’) estava
convencido de que só por mencionar algo isso já deve de alguma maneira ser ou
existir. E para resolver esse problema desenvolveu a teoria lógica das
descrições definidas, que aqui explica Quine, só que essa teoria não passa de
um recurso arbitrário para utilizarmos a linguagem de uma forma em que não
possamos cair na atribuição de existência. Não penso ser necessário inventar
uma teoria lógica das descrições para resolver o problema ou evitar o
compromisso de aceitar a existência de tudo aquilo que porventura nos ocorra
nomear. O problema está simplesmente em negar que só por pensarmos em algo,
mesmo sendo esse algo impossível, estejamos pressupondo sua existência.
Por sua parte, Quine resume a solução de Russell, com a
qual concorda, na página 9, destacada em amarelo. Eu, por minha parte,
considero essa “solução” completamente arbitrária e só se explica pelo fato de
Russell ter achado que pelo mero fato de utilizarmos a linguagem de alguma
forma, ela já necessariamente se liga ou
conecta à realidade, o que eu nego. Quine também vai dizer que a nomeação
de qualquer coisa tenha implicações ontológicas. Ou seja, o mero ato de nomear,
ou significar, não pressupõe a existência do nomeado ou denotado. (O resumo da
“solução” de Russell está no final da página 10 do PDF). Veja-se, também, o
final do primeiro parágrafo da página 11, destacado em amarelo:
“Nós não precisamos mais trabalhar sob a ilusão de que a
significatividade de um enunciado que contém um termo singular pressupõe uma
entidade nomeada pelo termo.”
Na mesma página 11, Quine explica a diferença entre “nomear”
e “significar” recorrendo ao exemplo de Frege sobre a distinção entre “Estrela
da manhã” e “Estrela da tarde”. Os dois têm significados diferentes, apesar de
nomearem o mesmo objeto. O que Quine quer mostrar é que, justamente, nomear é
uma coisa e significar é outra, e que não pelo mero ato de nomear ou de
significar estamos postulando um ente. No caso do exemplo, se nomear implicasse
na postulação de entes, “Estrela da manhã” e “Estrela da tarde” nomeariam dois
entes distintos, quando na verdade nomeiam apenas um: Vênus. O mero ato de
nomear, então, diferentemente do que mantinha Parmênides, Russell e o primeiro
Wittgenstein, não pressupõe a postulação de existência da entidade nomeada.
Lembrem que na primeira fase de Wittgenstein, a simples estrutura lógica de uma
proposição já determinava significados específicos e, obviamente, pressupunha a
existência do que se mencionava. O resumo da posição de Quine está no final da
página 15 do PDF.
4.
O problema de Parmênides e a teoria de Platão
dependem estreitamente do pressuposto (equivocado) da existência necessária do
que pensamos. Como sabemos, Platão propõe a teoria da existência independente e
absoluta de ideias ou formas que nos permitem falar. Pois tudo o que existe
corporalmente é cópia imperfeita de uma ideia ou, em termos medievais, de um
universal.
Na página 18 do PDF, Quine vai relacionar a célebre
disputa dos universais, entre realistas e nominalistas, com posições que
apareceram nas matemáticas e na lógica no final do século XIX e inícios do XX.
Sabemos que os realistas afirmavam a existência real do que chamavam ideias
universais, pois eram os atributos universais dos quais os entes particulares
“participavam”. Assim, uma rosa era vermelha porque existia o universal “vermelhidão”,
outra era dura porque existia o universal “dureza”, outra, branca, porque havia
a “brancura” e assim por diante. Os nominalistas, contrariamente, afirmavam que
os universais não existiam por si e que os chamados atributos ou propriedades
universais eram meras propriedades atribuídas com determinado nome e por
convenção às coisas particulares. Assim, a certas reações de alegria, ou
estados de espírito determinados, convencionávamos em chamar de “alegria”, sem
que a ideia absoluta de alegria devesse existir ou existisse em algum reino
metafísico. Quine relaciona corretamente o realismo medieval ao logicismo de
Russell, e eu acrescentaria, ao de Wittgenstein da primeira época, como tenho
insistido nas aulas de Filosofia da Linguagem. Na página 19 do PDF, Quine
menciona o formalismo e afirma, acertadamente, que para o formalista, os
enunciados lógicos e matemáticos não são mais do que símbolos que obedecem a
regras num jogo simbólico determinado, que pode ser esse ou outro, dependendo
de decisões convencionais dos matemáticos ou lógicos. De qualquer forma, as
fórmulas não possuem referência ou significado externos, independentes dos
sistemas aos que pertencem. (Esta segunda posição lembra a que Wittgenstein
assume na sua segunda fase, particularmente na sua referência ao jogo de
xadrez, na fase de transição, e aos jogos de linguagem, nas Investigações.)
5.
Finalmente, na página 21, Quine resume sua
posição sobre existência: Aceitar uma ontologia é como aceitar uma teoria
científica e não outra.
6.
Em conclusão, neste pequeno comentário sobre o
texto de Quine tenho tentado rastrear as origens no pensamento platônico e
medieval do realismo, nominalismo e formalismo da filosofia da lógica e das
matemáticas de início do século XX.
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