segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Transcrição do áudio "Sobre o que há" de Quine


Texto do áudio sobre “O que há” de Quine

1.    Para entender o que Quine mantém, é necessário lembrar o problema do não-ser  introduzido por Parmênides e a tentativa de resolver o problema por parte de Platão no Sofista. Em 236e─237a, o Estrangeiro diz a Teeteto:

É que, realmente, jovem feliz, nos vemos frente a uma questão extremamente difícil; pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo sem, entretanto, dizer com verdade, são maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como ontem e sempre.  Que modo encontrar, na realidade, para dizer ou pensar que o falso é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na contradição? Na verdade, Teeteto, a questão é de uma dificuldade extrema. (Sofista, 236e-237a).




Teeteto pergunta “Por quê?” e o Estrangeiro lhe responde assim:

A audácia de uma tal afirmação é supor o não-ser como ser; e, na realidade, nada de falso é possível sem essa condição. Era o que, meu jovem, já afirmava o grande Parmênides, tanto em prosa como em verso, a nós que então éramos jovens:
“Jamais obrigarás os não-seres a ser;
Antes, afasta teu pensamento desse caminho de investigação.” (237a-b)


A motivação do diálogo O Sofista é a impossibilidade que Platão deveu ter encontrado ao discutir com os sofistas, pois eles perceberam uma brecha na posição defendida por Parmênides. Pois se for verdade que o não-ser é impensável, impronunciável, inefável, como Parmênides afirma no seu poema, não seria possível negar ou contradizer qualquer discurso sofístico ou qualquer discurso falso, pois para refutar algo é necessário afirmar que o que se afirma não é; é necessário dizer que o outro afirma algo que “não é assim” ou  que “não existe” e, portanto, que o outro defende algo que é falso. O sofista teria o subterfúgio de perguntar: o que não é? E Platão responderia: isso que você disse não é. Nesse instante o sofista lembraria que Platão era um seguidor de Parmênides e lhe teria respondido: “mas não é verdade que Parmênides dizia que o nada não é, que o não-ser é impossível, impensável, inefável, impronunciável? Então, o que eu acabo de defender, se Parmênides estava certo, jamais poderia não ser”. Esta é a razão por que Platão afirma que o sofista “se escondeu num refúgio inextricável”. Platão, efetivamente, deve ter sido refutado muitas vezes pelos sofistas por causa da defesa da tese de Parmênides sobre a impossibilidade do não-ser. Vejamos como o próprio Platão, na voz do Estrangeiro, conta o que deve ter acontecido:


Por que então falar de mim por mais tempo? Para mostrar que fui vencido, agora como sempre, nesta argumentação contra o não-ser? (239b) [...] Se te parece melhor, não cogitemos nem de ti nem de mim. Mas, até que encontremos alguém capaz dessa proeza, digamos que o sofista, da maneira mais astuciosa do mundo, se escondeu num refúgio inextricável. (239c-d)

 Na solução, Platão nega que ao dizer que algo não é, estejamos pressupondo a existência do que estamos negando que existe. Que estejamos, como diz Quine, nos comprometendo ontologicamente. No Sofista, Platão fornece o que chamo uma teoria relacional do não-ser. Na sua solução, Platão vai negar que o não-ser denote alguma substância, ou denote algo que exista por si. Mas não é o lugar aqui para entrar nos detalhes de sua solução, apenas lembrar o problema do não-ser e suas derivações posteriores, tanto na filosofia medieval como na contemporânea. Quine vai dar uma solução semelhante à de Platão no que diz respeito à insubstancialidade do não-ser: ao nomear algo e dizer que esse algo não existe não estamos pressupondo que a mera nomeação já o ponha na existência em algum sentido. Não estamos, ao afirmar que algo não é, nos comprometendo ontologicamente, isto é, pressupondo tacitamente que o que negamos ser, seja, que o que negamos existir, exista. Assim, as primeiras páginas do artigo estão para discutir esse assunto e negar a tese de que só porque mencionamos ou nomeamos algo, seja “Pégaso” ou o “quadrado redondo”, o que nomeamos ou mencionamos deva, só por esse ato de nomeação, ter algum tipo de existência.
2.    Na página 6 do PDF, Quine critica com razão a tese de que contradições não têm sentido, incluída a prova por redução ao absurdo, fundamental para fazermos lógica ou matemática. É a tese, por exemplo, encontrada no primeiro Wittgenstein, para quem tanto as tautologias como as contradições carecem de sentido. Só que na linguagem cotidiana dizemos coisas como “ou você faz sua tarefa ou você faz sua tarefa” para mostrar para a criança que não tem opção a não ser fazer a tarefa, e ela entende perfeitamente o sentido do que estamos querendo dizer. Costumamos, também, afirmar qualquer contradição para mostrar a impossibilidade de algo. Além do uso na linguagem coloquial, tanto na lógica como nas matemáticas a prova por redução ao absurdo é um recurso fundamental para se provarem teoremas.
3.     Na página 7 do PDF, Quine recorre à teoria das descrições definidas de Russell para mostrar como fugir do pressuposto existencial de afirmações do tipo: “o quadrado redondo é tal coisa”, “Pégaso é um cavalo alado” ou qualquer afirmação sobre algo inexistente ou cuja existência física seja impossível.  Se Parmênides estiver certo, ao dizer que algo não é já estamos “pensando no que não é”, o que é contraditório. Aqui a tese problemática por trás da posição de Parmênides é esta: só por pensarmos em algo, esse algo deve passar a, de alguma forma, ser ou existir. Chamo a atenção para este fato: Russell, na sua posição de início do século 20, posição realista (que em lógica se chama ‘logicista’) estava convencido de que só por mencionar algo isso já deve de alguma maneira ser ou existir. E para resolver esse problema desenvolveu a teoria lógica das descrições definidas, que aqui explica Quine, só que essa teoria não passa de um recurso arbitrário para utilizarmos a linguagem de uma forma em que não possamos cair na atribuição de existência. Não penso ser necessário inventar uma teoria lógica das descrições para resolver o problema ou evitar o compromisso de aceitar a existência de tudo aquilo que porventura nos ocorra nomear. O problema está simplesmente em negar que só por pensarmos em algo, mesmo sendo esse algo impossível, estejamos pressupondo sua existência.
Por sua parte, Quine resume a solução de Russell, com a qual concorda, na página 9, destacada em amarelo. Eu, por minha parte, considero essa “solução” completamente arbitrária e só se explica pelo fato de Russell ter achado que pelo mero fato de utilizarmos a linguagem de alguma forma, ela já necessariamente se liga ou conecta à realidade, o que eu nego. Quine também vai dizer que a nomeação de qualquer coisa tenha implicações ontológicas. Ou seja, o mero ato de nomear, ou significar, não pressupõe a existência do nomeado ou denotado. (O resumo da “solução” de Russell está no final da página 10 do PDF). Veja-se, também, o final do primeiro parágrafo da página 11, destacado em amarelo:

“Nós não precisamos mais trabalhar sob a ilusão de que a significatividade de um enunciado que contém um termo singular pressupõe uma entidade nomeada pelo termo.”


Na mesma página 11, Quine explica a diferença entre “nomear” e “significar” recorrendo ao exemplo de Frege sobre a distinção entre “Estrela da manhã” e “Estrela da tarde”. Os dois têm significados diferentes, apesar de nomearem o mesmo objeto. O que Quine quer mostrar é que, justamente, nomear é uma coisa e significar é outra, e que não pelo mero ato de nomear ou de significar estamos postulando um ente. No caso do exemplo, se nomear implicasse na postulação de entes, “Estrela da manhã” e “Estrela da tarde” nomeariam dois entes distintos, quando na verdade nomeiam apenas um: Vênus. O mero ato de nomear, então, diferentemente do que mantinha Parmênides, Russell e o primeiro Wittgenstein, não pressupõe a postulação de existência da entidade nomeada. Lembrem que na primeira fase de Wittgenstein, a simples estrutura lógica de uma proposição já determinava significados específicos e, obviamente, pressupunha a existência do que se mencionava. O resumo da posição de Quine está no final da página 15 do PDF.

4.    O problema de Parmênides e a teoria de Platão dependem estreitamente do pressuposto (equivocado) da existência necessária do que pensamos. Como sabemos, Platão propõe a teoria da existência independente e absoluta de ideias ou formas que nos permitem falar. Pois tudo o que existe corporalmente é cópia imperfeita de uma ideia ou, em termos medievais, de um universal.
Na página 18 do PDF, Quine vai relacionar a célebre disputa dos universais, entre realistas e nominalistas, com posições que apareceram nas matemáticas e na lógica no final do século XIX e inícios do XX. Sabemos que os realistas afirmavam a existência real do que chamavam ideias universais, pois eram os atributos universais dos quais os entes particulares “participavam”. Assim, uma rosa era vermelha porque existia o universal “vermelhidão”, outra era dura porque existia o universal “dureza”, outra, branca, porque havia a “brancura” e assim por diante. Os nominalistas, contrariamente, afirmavam que os universais não existiam por si e que os chamados atributos ou propriedades universais eram meras propriedades atribuídas com determinado nome e por convenção às coisas particulares. Assim, a certas reações de alegria, ou estados de espírito determinados, convencionávamos em chamar de “alegria”, sem que a ideia absoluta de alegria devesse existir ou existisse em algum reino metafísico. Quine relaciona corretamente o realismo medieval ao logicismo de Russell, e eu acrescentaria, ao de Wittgenstein da primeira época, como tenho insistido nas aulas de Filosofia da Linguagem. Na página 19 do PDF, Quine menciona o formalismo e afirma, acertadamente, que para o formalista, os enunciados lógicos e matemáticos não são mais do que símbolos que obedecem a regras num jogo simbólico determinado, que pode ser esse ou outro, dependendo de decisões convencionais dos matemáticos ou lógicos. De qualquer forma, as fórmulas não possuem referência ou significado externos, independentes dos sistemas aos que pertencem. (Esta segunda posição lembra a que Wittgenstein assume na sua segunda fase, particularmente na sua referência ao jogo de xadrez, na fase de transição, e aos jogos de linguagem, nas Investigações.)

5.       Finalmente, na página 21, Quine resume sua posição sobre existência: Aceitar uma ontologia é como aceitar uma teoria científica e não outra.
6.       Em conclusão, neste pequeno comentário sobre o texto de Quine tenho tentado rastrear as origens no pensamento platônico e medieval do realismo, nominalismo e formalismo da filosofia da lógica e das matemáticas de início do século XX.

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